PARA AS IRONIAS PACIFICADORAS
A semana transcorreu na Youkoloko em plena normalidade. A resignação transparente de um Moses pós-traumatizado, com o assassinato misterioso de um amigo “recém-certificado”, não se propagou pela sensibilidade de Aizaiah Codi; o estudante apoiava o seu chefe através de enfadonhas frases proverbiais (“o que tem que acontecer, acontece mesmo” / ”vaso que é bom quebra fácil” / ”Ruby e seu pai foram tragédias maiores, não fique mal” / “a sua vida continua” e chatices do tipo), porém todas elas vinham unicamente das cordas vocais... Tais palavras saíam sempre insossas. Era claro que Aizaiah não fora com a cara de Dylan e – mesmo se os dois fossem amicíssimos - seria difícil compartilhar emoções com uma pessoa inexpressiva 99% do tempo.
Durante os dias úteis, dois deles merecem ser lidos no diário Youko: Na quarta-feira, Monique telefonou à noite para Moses e o “intimou” a um almoço no domingo junto à família Hoshino. O senhor Toy recebera alta no hospital, portanto, Monique tendeu a ideia de apresentar o seu namorado aos pais num dia tão feliz – Moses somente sentiu uma coçada no peito quando ouviu “namoro”, mas tudo bem. Já na sexta-feira, houve uma desilusão de surpresas; uma notícia horrível e outra não tanto: A moça ligou novamente e comunicou a Debiega que o lugar do almoço seria na churrascaria Miticake! Isso gerou um inferno astral no espírito de Moses (um vegetariano que já “caíra da graça” com os caranguejos dos Codi) e uma preocupação daquelas de encher a acne facial com energia. Comer carne sangrenta de um pobre gado abatido? Moses nunca vislumbrava a fachada de uma churrascaria.
A outra novidade dizia respeito à folhinha amarela pega no trágico domingo. O autor dos trechos poéticos que desafiavam conhecimentos apareceu na YL; ou melhor, a autora.
Glynis Graumer causou um rebuliço tácito ao adentrar as dependências da loja: curvilínea, jovial, curvilínea, segura de si, curvilínea... Seguramente, a mulher mais bonita a ter ido até o balcão dos Youkos. Vestia calça de uma academia de ginástica bem justa e uma blusa branca solta nos ombros – deixando a mostra parte de seu sutiã vermelho, igual à cor dos cabelos: Tratava-se da moça que dera bombons e conselhos ao menino de Tenbrennan. Moses não ia esquecer-se daquele corte ruivo, dos óculos e de olhos verdes tão insinuantes; no meio de tanto charme, um acessório a distinguiria de qualquer outra mulher (mesmo se ela fosse feia): Um cubo multicolorido em miniatura como pingente. Eis o diálogo ocorrido no “primeiro encontro” de sexta-feira:
(FLASHBACK:)
- Bom dia (pausa para leitura do “crachá”), Moses. Acredito que você não me conheça, mas... Eu sei que você tem em seu poder um papel sujo e amarelado com letra feminina. Posso provar que sou a dona da folhinha reproduzindo a mesma grafia que leste nela... Ou você não é um curioso? (sorriso resplandecente).
Antes de Moses, Aizaiah quase desabou de lado ao convergir o seu olhar com o da mulher: Estava revestido pelo vidro das lentes, é verdade; entretanto a tonalidade de verde colorindo as córneas amolecia qualquer princípio dos homens. Moses gaguejou ao tentar falar:
- É... E-eu... Aca-ca-bei lendo... Mas pensei que não tinha va-valor algum, estando no chão da rua, e... Como vo-você descobriu que eu ha... Havia pegado um papel em Tenbrennan?
Tal questionamento era deferido; mas feito muito cedo. Ela abriu mais as pupilas e:
- Não é para ficar na defensiva comigo. Nós estávamos próximos, a centímetros de distância, frente ao bar Beerosca no domingo; O jovem que foi morto com um tiro na testa no mesmo dia era um amigo seu. Os jornais de segunda não falaram apenas de futebol.
Aizaiah foi para detrás do balcão, tão apreensivo quando Moses: Dylan fora a última vítima de homicídio fortemente noticiada, mas - agora que a “cliente” falara – não era do feitio da Polícia ou da imprensa nacional Sinderfense deixar de investigar (e entrevistar) testemunhas logo após a ocorrência de um crime. Quatro dias inteiros se foram e o Youko estava ali; quieto, sem nem saber como é a delegacia do próprio bairro... Será que a morte de Dylan fora apenas um pé de página nas gazetas ou?...
- Você. O que você sabe sobre a vida de Dylan?
A mulher reagiu à pergunta empinando o nariz um pouquinho; catou uns brincos presos a sua munhequeira de pano e pôs em suas (grandes) orelhas. Nisso, começou a rir sem pudores: Ela é mortalmente linda!
- Ah, espere aí... Espere aí... Você está pensando que fui eu que...? Hahahaha! Concluo que realmente ninguém veio aqui lhe interrogar, Moses! Tudo tem a sua primeira vez, certo? Eu não sou assassina nem fui criada nos morros de Tenbrennan: Meu nome é Glynis Graumer, detetive liberal, muito prazer (Glynis estendeu as costas da mão para Debiega).
- Oh... (Moses olhou para Codi e ele sinalizou com um franzir de testa: “beije-a!”)
Detetive liberal. Mais uma profissão nascida no início do Século XXI, que... Os Youkos nunca tinham ouvido falar desse tipo de detetive. Então, os dois disseram, em uníssono, a palavra que os homens “autorizam” as mulheres a continuar falando (“huuuummm...”):
- Caso vocês mantenham dúvidas sobre mim, pegue a minha agenda (Glynis jogou o seu celular caro em forma de parábola nas mãos de Moses!), ligue para algum dos números e certifique-se da verdade. Há atletas, policiais, parlamentares, agiotas... Esbaldem-se. (outra piscadinha)
- Na-não... Esqueça. Não é necessário.
Glynis era a paz de espírito encarnada, esculpida e revestida; O jeito que ela olhava Moses (e, de “canto de olho”, Aizaiah) fazia qualquer observador de fora da YL achar q ela seria a especialista em bichinhos de estimação e os rapazes estariam ali como fregueses. A bela fez um sinal singelo com os dedos médio e indicador e pareceu que o artigo foi atraído por ela, e não o balconista que o devolveu... Ela assumia o controle.
- Voltando ao assunto, meninos: Inicialmente, quero a folhinha suja de volta. Eu a escrevi para uma pessoa usar em salas de aula... Ontem eu acordei com outra ideia sobre a qualidade do meu texto, e então, decidi investigar “aonde ela teria ido”. E agora estou aqui... Diante do colega de Dylan Jaez. Do último amigo que ele viu antes de morrer... Quem sabe.
- Eu vou subir para pegar o seu papel... Espere, por favor.
Como “detetive liberal”, Glynis já demonstrou ser perita em desmantelar os pensamentos: Moses avançou pelos degraus, outra vez, arrasado; Suas reservas em relação ao Office-boy de Tenbrennan no instante em que o conhecera tinham lhe passado a perna, e em muitos sentidos. Aquela noite na Praça Rozendo não faria jus dos sentimentos do Youko aos amigos, - já que seu foco mental estava no Furacão Sabrina – contudo, a culpa de ser um homem com “jeito de velho” ficara semelhante a um tormento - pelo embrião imbecil de preconceito que semeara.
A folha amarela estava próximo ao computador, Moses releu a parte não rabiscada, para trabalhar sua memória:
O quê Sinderful teria de bom para oferecer a vocês, monstrinhos? Uma nação dividida em quinze províncias (ou em dois partidos políticos, como preferir) cujas formações naturais sumiram na mesma velocidade que a integridade social? Correto! Ou um ponto grande no mapa-múndi, onde tudo o que se faz é vender poder aos que podem comprar; escutar justamente os que não têm palavra alguma, e (rasura) – preste atenção - fornecer recursos mesquinhos aos trabalhadores e pais dos monstrinhos, a fim de criarem verdadeiros monstrinhos? (rabisco) Está correto também! O modo de pensar a vida, em um país como o nosso, só pode ser caracterizado a partir de comparações com a vida dos “outros”, dos estrangeiros: (rasura) Valorizamos primeiro o que vem de fora, os produtos nacionais que consumimos estão resumidos em novelas e jogadores de futebol. (rasura) A culpa ronda a mentalidade dos Sinderfenses? Lustra o conformismo popular com os abusos das autoridades? Praticamente metade dela... A outra parte tem a ver, não riam, com a palavra “sangue”... Isso é assunto para outra aula, monstrinhos; Temos que refletir hoje sobre a desigualdade das margens em relação ao centro, na superfície e na imundície também. (rabisco) Vivendo às margens da morte,...
Se o papelzinho fosse uma folha branca de tamanho padrão, Moses não iria devolver; ele tinha adorado o texto concebido pela grande inteligência - embora expressa em letras miúdas - de Glynis Graumer. Mal sabia para quem tecia elogios lendo o suflite amarelo (durante toda a semana), mas quando tornou a desafiar o assoalho perto do corrimão, com uma pisada forte, tinha noção que entregar aquela folha a sua dona significava algo diferente do conceito de “uma boa ação”.
- Ah, ele está vivo! Quis ler novamente minhas formidáveis linhas antes de se despedir... Que fofo hahaha!
- Hehehehe! E não é que ela também é convencida! – Riu-se Aizaiah, acompanhado de Glynis. Em minutos, os dois descobriram ter algum denominador comum: Moses, até entrosar-se com Codi, demorara uns quatro meses desde a “contratação” dele.
- Se todas as árvores que são derrubadas valessem as suas palavras aqui, a gente viveria num lugar melhor hehe. – reagiu Moses, tentando bajular a moça e conquistar sua amizade também.
- Está tentando me bajular? Que péssimo! Hahaha! Acredite Moses, a pessoa que pertencerá essa folhinha (Glynis pegou-a no balcão) é muito mais “escritora” do que eu. Eu só tive que ajudá-la, pois ela está impossibilitada de sair de casa agora.
- Caramba, então sua presença em Tenbrennan no domingo foi como... Uma pesquisa?
- Sim. Mas não desvirtuaremos o segundo assunto importante: Precisarei de um depoimento seu, Moses. Eu achei a morte de Dylan Jaez o fato mais inexorável já acontecido nesse ano. Creio que agora, efetivamente, está na hora de me firmar como detetive; se minha investigação for bem-sucedida, poderei entrar nos livros didáticos de História... Preciso de você.
Caramba, como Glynis fala! O “preciso de você” nem ricocheteou tanto na cabeça de Moses, quando entrou em seu ouvido interno, porque o Youko tinha acabado de adquirir outra razão para ficar inquieto: Seria interrogado por um não-policial pela morte de seu quase “amigão de fé”; além de manter-se em constante trabalho sináptico a fim de livrar-se da churrascaria com Monique e sua família. Ele escolheu virar as cartas à senhorita Graumer de uma vez:
- Veja bem, Glynis... Dá para a gente ver esse interrogatório para depois de segunda-feira? Já tenho um problemão que merece ser estudado com cautela... Não é nada ligado a delitos ou infrações não; tenho que driblar os pais da minha namora...
Por pouco, Debiega não solta a palavra que sacramentaria sua ligação com Monique.
Mas... Por que ele não falou? Glynis abaixou brevemente a sua fronte, ao balanço lingüístico de Moses, e deu um peteleco no cubo-pingente; fazendo-o virar um tipo de pêndulo:
- Certo... A namorada. Está tudo bem, então; Vamos fazer assim: Eu o ajudo com a minha força e eu perdôo a sua fraqueza, que tal?
- Eu não entendi o que disse. Perdão.
- Você é um jovem dono de uma empresa e não tem fibra para discernir um compromisso social de um compromisso amoroso? Escute, Moses... Eu sei que não o conheço bem, mas inventar uma desculpa furada para fugir dos pais da namorada não mexe na parte cefálica que lida com a consciência; Dylan está morto!... E eu temo que seu óbito esteja ligado a muitos outros bem sinistros! (pausa com respiração prolongada) Desculpe recapitular o tema de morte, pois parece que você não gosta... Se precisas mesmo de um tempo para abrir o jogo sobre Jaez, eu entenderei... Só que, por favor, pode comportar-se como um homem diante de mim. Uma coisa é alguém ser sinceramente emotivo; e outra é ser falsamente sonso.
Falar demais, Glynis falava; mas que o dom de extrair o que a dupla de Youkos pretendia levar para o túmulo corria em suas veias, era fato. Homens em Sinderful são assim: no momento em que se enturmam com mulheres recém-apresentadas, abrandam a sua abordagem de conversa - o que viria a favorecer alguma paquera – a fim de aparentar uma personalidade sensível ou compreensiva às fragilidades femininas... Boa fração das moças ainda caía em tal truque (por motivos inconclusivos). A detetive liberal, no entanto, detestava o tipo de “papinho besta”.
Moses absorveu tudo o que ela declarara; mas não se sentiu pior do que se encontrava porque não nutria uma arquitetônica amizade com Dylan e não poderia dizer algo muito prestativo... Isto define porque achou mais decoroso dialogar com Glynis após passar o próximo domingo: Sim, mesmo com uma mulher maravilhosa pedindo para ficar a sós com ele, Moses não adiou o interrogatório por fúteis caprichos – nem por “cantadas”.
- Quer ajuda com qual problema, exatamente? – reanimou o ambiente Glynis.
- Para não demorarmos muito, deixe-me resumir, Lily: Ele é vegetariano e a família da namorada o intimou para ir comer numa churrascaria no domingo! Com licença, chegou freguês. – Aizaiah reconduziu gentilmente o contato entre os dois, e o interesse do cliente pelos sabiás.
- Aaahhh... E agora eu decifro o resto: O papai da princesa é um daqueles tiranossauros radicais que nem abrem espaço para outra opção de festas a não ser as regadas à carne?
- É, por aí... Ele não deve ser um tiranossauro ou coisa assim... Mas é possível que ele tenha um preconceito danado contra nós, veganos... A julgar pela região onde mora.
- Que belo jeitinho de pensar nos outros, hã? Parabéns, Moses. Não é assim que eu...
- Não releve isso, Lily: Em um jantar na minha casa ele comeu siri. Pois não, senhor... Uma gaiola? Vou pegá-la. – Aizaiah tinha um ouvido no leão e o outro na gata; A muralha da China era uma defensora leal da verdade até no seu formato mais atômico.
A ruiva jogou o olhar em Moses com aquela expressão de surpresa que constrange a pessoa pega no flagra; Antes que o chefe da YL completasse sua desculpa - “mas foi uma recaída infeliz, eu estava muito extasiado porq...” – ele ouviu um argumento pronto pela própria Glynis:
- Esse pecado não o incrimina, Aizaiah. Eu não sou vegetariana, todavia acredito que não é tarefa fácil se ater só a alimentação com folhas, soja... Seres humanos cometem erros; Uma pena, mas erram. (silêncio breve dos Youkos) De qualquer modo, amanhã é sábado e eu virei aqui com um bom plano. Você ficará bem com os coroas e, de quebra, não engolirá nenhum boi ou porco (Graumer olhou para cima - como um monge em contemplação - em direção aos passarinhos engaiolados e iniciou a mexer no cubo). Eu garanto aos dois... Afinal, eu sou um gênio. Até mais.
Glynis saiu do Centro YL concentrada em apertar o cubo. Os meninos mantinham-se tontos por uma visitante tão... Mas tão... Inusitada.
(FIM DO FLASHBACK)
- Lily saiu de forma muito repentina ontem, não acha, Moses? – Foi a primeira frase da Codi logo nos primeiros minutos da manhã de sábado.
- Parece que ela tinha urgência de entregar a folhinha ao amigo, ou algo do gênero... Por que você a chama de “Lily”, Aizaiah? Que intimidade é essa? Hahaha (E veio Moses com sua risadinha milagrosa; para amenizar o tom repreensivo da voz).
- Porque ela pediu, oras: Quando você subiu, ela foi a cliente mais inteligível que já veio aqui. Além de ser extremamente comunicativa como você notou, ela é atenciosa com todo “ai” que você der. Eu deixei o lápis cair ontem e isso impulsionou nosso papo esclarecedor de dois minutos.
Para fazer um cara da personalidade de Aizaiah falar “inteligível”, Glynis seria mesmo um ser de outro planeta! Ela prontificou-se a contribuir com o futuro apuro de Moses com um ânimo tão brioso que, para um observador qualquer, a acusaria de ser uma irmã ou prima do Youko; e no que coubesse ao “namorado” de Monique, nada seria remediado e ele teria que mastigar os bovinos (suínos não eram a especialidade do Miticake) assados... Moses estava oco de idéias.
- Olá, bom dia! Tem hamster chinês aí? – Glynis emergiu na rua e entrou na YL, irradiando um riso de triunfo e vasculhando com o olhar os flancos da loja; ela queria um hamster.
- Bom dia, Lilylynis! – respondeu Aizaiah e Moses no mesmo segundo, tentando emular alguma felicidade igual a da ruiva.
- Hahaha! Ficaram nervosos? Devo melhorar minhas entradas surpresa. Vamos ao que interessa: O restaurante que tu irás com o pessoal é o Miticake, estou certa?
- Sim! Como descobriu? – retornou a pergunta Moses, incrédulo.
- Bom, pelo que parece, o Miticake comemora 30 anos de funcionamento este mês e seu cardápio quase todo está com novos e especiais pratos; ainda mais, eles perderam o orgulho de ser “lugar de rico”! Pois os descontos dados durante os dias úteis fizeram metade de sua concorrência fechar as portas.
Não era lá uma notícia daquelas que mudam o rumo do mundo, mas Glynis pôde mostrar aos Youkos o seu faro investigativo, eliminando assim quaisquer tentativas de deboche por parte deles ou de terceiros (Lily já acreditaria que Codi e Debiega não seriam capazes de zombar de mulheres, todavia como um “gênio” que diz ser... Não pode deixar furos em seu comportamento). A moça tirou das costas uma mini-mochila - que era mania entre as adolescentes urbanas do país – e extraiu de seu interior um aparelho preto e um auditivo; pegou o cubo-pingente por último e repôs em seu pescoço. Ela bolara mesmo um plano em defesa dos animais (assados) para Moses. Ela parou o seu cotidiano para pensar em contornar uma dificuldade de um cara desconhecido até o dia anterior... Que mulher admirável, em todos os quesitos... Até Aizaiah abriu os dentes num pequeno sorriso vendo aquele material; Moses, por outro lado, achava Glynis exageradamente misteriosa – num sentido negativo. Após recolher uma gaiolinha com roedores, Lily virou-se e desconversou:
- Puxa, eu quero mesmo levar algum hamster... Ops, perdão. Falando logo do meu plano para despistar carnívoros: Moses, tu sabes como o pai ou a mãe da moça são?
- Lamento, mas não... É um primeiro encontro para todos nós; só vi a m... Monique. Nem fotos deles eu vi e nem nada. Entretanto, acho que o pai estará com um braço engessado.
Antes de encerrar sua sentença - com um bipolar “Por que perguntou?” – o veterinário ouviu outra questão elaborada pela garota do cubo:
- Você tem preferência pelo posicionamento das mesas quando vai a um restaurante?
- É... Bom, é... Eu não gosto de sentar no centro do ambiente... Não importando o espaço público que seja; eu tenho vergonha... Eu acho que tenho. Prefiro os cantos do lugar mesmo.
- Hahaha! Bom! Eu tinha uma amiga que detestava ser muito visada também; Não devia nada a ninguém, mas... Nem quis ter um velório, acredita? Haha... Obrigada, Moses, agora ao prin...
Aversão a velórios? Em segundos, Aizaiah notou o amarelo que coloriu o rosto de seu chefe depois do comentário dispensável de Lily. Mas só Moses lhe explicaria o motivo do choque: Ruby detestava ser notada publicamente em qualquer lugar por qualquer causa (até para amarrar o cadarço ela se enfiava em vielas ou becos) e no próximo dia 22 de junho, faria três anos que o corpo dela fora embalsamado e lançado nas águas de Porcelina... A pedido da própria jovem e acatado pelos Locke. O Youko segurou bravamente a lágrima que batia em sua íris (a gotinha talvez quisesse só conhecer a ruiva tagarela!) – Desconhecendo o impacto da obscura “coincidência”, Glynis bateu palmas e pigarreou:
- Isso aqui é um ponto eletrônico, – apontando para o pequeno aparelho de ouvido – e isto é um walkie-talkie convencional com detalhes femininos: Para simular um celular comum. Cof.
- Vai nos dizer que eu terei de usar um... Ponto eletrônico? No Miticake? – Indagações iniciais de Moses; o sábado, pelo estresse, já ficava com uma “cara” de domingo.
- Relaxe... O plano não é nada complicado e muito menos envolve escândalos de alguém na churrascaria ou pancadarias com explosões. Portanto, é mais fácil passar a você as instruções no momento do almoço mesmo; até porque não quero que você relute em concordar com os rumos do meu plano... Atitude que, talvez, tu tomarias. É a única ideia compatível para a ocasião de amanhã.
- Eu iria relutar? Então há uma etapa no tal plano que é indevida, Glynis?
- Oh não, eu e minhas cordas vocais sociáveis... Estarei por lá amanhã às onze horas, Moses! Vou indo logo, o modo de ajustar o ponto está neste bilhete aqui; ainda bem que o Miticake em Meladori só tem uma filial! Em Garbania, todas as quatro unidades são distantes de tudo! Até logo, Aizaiah! (piscadela amistosa) Nos falamos! Moses, dirija-se a mim como ‘Lily’ também!
E a mulher saiu depressa outra vez... As gaiolas com os hamsters permaneciam no balcão. Codi os levou de volta a bancada suspensa de exibição da loja e soltou:
- Será que Lily pretende levar um desses para casa mesmo depois, hein Moses? Moses?
Com os olhos fixos na porta da YL, o herdeiro Debiega encontrava-se desalentado: Se ele iria ouvir as instruções de Lily in loco, através do ponto, significava que – ao menos uma vez – Moses colocaria um pedaço de carne em sua boca... A garota não havia levado em conta o terror que Moses sentiria quando se vissem neste instante; os bois e as vacas detinham a habilidade de ruminar seus alimentos, e o faziam apenas por terem que assimilar nutrientes. “Fome”, no dicionário deste vegano, era mero capricho de seres humanos! O mecanismo circulatório digestivo do gado existia justamente para os bichos mastigarem duas vezes a erva (uma na “ida” e outra na “volta”), absorver tudo o necessário e sobreviverem. As pessoas achariam que o boi faz o mato mascado voltar à língua para sentirem o sabor das folhas? Quando vômito foi sinônimo de prazer? Se a população soubesse que o gado tinha mais “ética” do que várias delas... Quem sabe o vegetarianismo fosse mias bem visto? A viagem cerebral de Moses foi interrompida numa escala em “Codilândia”:
- Ei, rapaz? Acorda! Você está bem? Está pensando na Lily, é?
- Oi? Claro que não! Estou pensando na... Na... Monique e como será amanhã, claro.
- Devo confiar que você trabalhará direito até as seis horas hoje, soldado? – ironizou Aizaiah, simulando ser o “chefão”.
- Hahaha! Gostei... Vejo que desde a visita de Lily, você está mais contente, Aizaiah. Posso concluir algo disso? – O Youko podia ter “jeito de velho’, mas não “jeito de bobo”.
- Nem cogite isso, Moses... Eu tenho namorada. – Codi ficou visivelmente desgostoso com a inversão de papéis que o dono da YL conseguiu impor a sua brincadeira.
Oh? Bem... Eu não sabia. Olhe, eu ficarei aqui fazendo tudo até as seis sim! Porque você não tira o resto do dia de folga, após o almoço? Amanhã já é domingo, dia pacífico e, no meu caso, de confraternização hehehe... – disse Moses, tentando ser, de novo, um apresentador de TV aberta.
Aizaiah assentiu com um gesto e avançou até a sua vassoura favorita; o relógio bateu uma hora da tarde e o assistente entregou a YL limpinha e “alimentada” (os bichinhos em perfeito estado) a Moses... Porém antes de ir embora desejou “boa sorte com eles amanhã” com um murrinho nas costas do Youko. Sorte era com o que Debiega mais sonhou durante a madrugada de sábado para domingo: A herdeira dos Hoshino telefonara, lá pelas nove da noite, alertando o “gatinho” a não tomar a palavra do seu pai, a não contrariá-lo, a não bajulá-lo, a não demorar em pedir seu prato e - muito menos – tocar sobre o assunto do tal atentado em Tenbrennan. Monique sabia que seria embaraçoso comportar-se como um pulha; pediu automaticamente desculpas a Moses e informou que, infelizmente, a definição de “harmonia” do senhor Toy consistia em não incomodar as pessoas desconhecidas. Se a cordialidade nascer enquanto ele me enche de perguntas, nós temos química; se a cordialidade pedir para sair, eu jogo as carnes servidas na cabeça dele... – Pensou Moses, “o valentão”. Estava tão simples viver como alguém normal e solitário nos fins de semana, o jeitão de velhaco... Por que é só mover a vida amorosa que a Terra muda de ritmo? “Sem alarmes e sem surpresas” era o lema da paz interior de Moses fazia três anos.
O Sol retornou ao Hemisfério Oeste do globo e Moses despertou focado na Kombi. Foi-se duas horas lavando a carroceria, reparando os retrovisores e trocando os pneus dianteiros (serviço de um borracheiro, claro). A Miticake localizava-se no bairro chique Eppou, - um ex-terreno baldio - aquela espécie de região onde até os hidrantes eram abastecidos com vinho chardonnay. A nova estratégia da churrascaria, conforme as investigações de Glynis, que atraía as camadas de classe média para seus domínios não devia proporcionar momentos constrangedores às famílias de ‘novos ricos’ do próprio bairro. Sinderful é um país muito engraçado: Seu povo não sabia explicar o que era o vocábulo “contradição”, mas a sociedade não respiraria sã sem o valor semântico dela.
Nem foi preciso estacionar na Rua do Miticake para Moses avistar os Hoshino: Monique, Sr. Toy e senhora mãe dela estavam parados na soleira do restaurante; As mulheres vestiam uma casual calça jeans e blusas decotadas para o verão. Toy, além do gesso em seu braço direito, trajava uma bermuda de “tiozão do churrasco” mesmo, sandálias de couro marrom e uma camisa pólo larga... Ainda bem que não tinha uma pança residual indicando “homem carnívoro”. Monique cochichou ao seu pai que aquele seria o carro de Moses, o homem acenou e o seu “genro” pediu que aguardassem que ele parasse em segurança o automóvel.
E quem estava na calçada, em posição de flor-de-lótus, perto da única vaga a 45º disponível? Glynis - com uma emplumada indumentária do vermelho mais instigante possível – saiu do meio-fio para a Kombi YL invadir o espaço entre um teco-teco e uma Mercedes.
- Bom dia, Quixote! Preparado para o duelo com cadáveres? – indagou uma vívida Lily.
- Oi, Gly... Lily. Obrigado pelo “Quixote”, caso seja um elogio.
- Hahaha! Com certeza não é; suas roupas estão meio desencontradas, não acha?
Lily possuía também um tino estilístico: Debiega calçava um par de tênis surrado com um bermudão branco e uma camisa florida (como as de um turista) amarela e laranja. Entretanto, rebateu a apreciação de Glynis com um abrir de braços para baixo, como o seu pescoço...
- Ué, tem algum problema? Acho que está na moda... Não? Meu pai adorava esta camisa e a bermuda com tênis mostram que sou um jovem normal, não está calor... Sopa de motivos.
- Hahahaha! Adorei seus argumentos! Bom, como diz o meu irmão, que seja. Olhe só: (Lily agarrou Moses pelo braço e puxou para trás de um poste) Eu dei uma olhada cuidadosa no interior do Miticake e eis (a ruiva parou para acompanhar com o olhar uma família entrando no estabelecimento; eles acharam uma mesa no meio do salão e Lily sorriu) que há, ainda, duas mesas naquele canto ali, - girou o cocuruto do Youko quatro horas no sentido anti-horário – desocupadas e cegas... Você pedirá para ficarem na da frente, e eu estarei na de trás. Já está com o ponto ligado?
- Não. Espere (Moses tirou o aparelho do ouvido e o ajustou)... Pronto. O pai dela odeia escândalos, não faça nada constrangedor... Lily... Eu terei de comer um pouco dos... Animais?
- Confie em mim, por favor. Se o meu plano fosse fazer você ingerir carne, você acha que eu ia PENSAR em te propor ajuda? Vá com eles, entre. E que os ventos estejam ao nosso lado.
O vegano engoliu em seco, fez “positivo” com a cabeça e partiu para cumprimentar os Hoshino na entrada do Miticake. Glynis contou alguns segundos após o quarteto acomodar-se na mesa do canto (tal como ela orientou, Moses apontou os lugares aos responsáveis de Monique) e foi sorrateira pela porta traseira do restaurante; com a comanda nas mãos, pôde sentar-se na mesa vaga antes de um casal de asiáticos – também recém-chegados – interessados naquele mesmo lugar. Puxou o walkie-talkie assim que catou o cardápio e o abriu rente ao rosto:
- Quixote, está me ouvindo? Câmbio... Digo: se está, estale os dedos abaixo do assento.
Moses estalou os dedos enquanto ria amarelo de alguma piada feita por Toy (Lily ouvira a palavra “Kombi”) – A mãe de Monique tomou o menu do marido e também a palavra:
- Bem, veterinário Moses... Moses de quê mesmo? Minha filha não disse seu sobrenome.
- Ah, sou Moses Debiega. Muito prazer em vê-la, senhora Hoshino... Perdoe a minha indelicadeza em não me identificar logo.
- Oh, que amor... Hahaha! – descontraiu o senhor Toy e sua bocarra de dentes dourados (num mau sentido...). O nome da senhora Hoshino é Talula, Moses (Toy calou Talula ainda muda).
Nos milésimos em que a família riu em conjunto da piadinha sem graça, Moses olhou para Lily: A ruiva havia abaixado o cardápio... Exibindo ao mundo uma expressão mórbida de estarrecimento. Moses olhou e também ficou abalado com aquela face; num “golpe” da luz ambiente, ele resolveu rodar o pescoço em movimentos circulares, para disfarçar perante o clã Hoshino. Quando o garçom que os atendeu suspendeu sua bandeja de aço inox na vertical, o Youko vislumbrou a detetive em suas costas maltratando o cubo-pingente de diversas maneiras...
Um momento: Moses deduziu - após ver o reflexo - que o quê Lily manipulava não era só um cubo... E sim um cubo mágico. Sim! O brinquedo de seis cantos e cores cujo objetivo é desmembrá-lo em cada canto (separado em nove quadradinhos) e montá-lo de volta a sua forma original (uma cor completa de cada lado). As crianças sinderfenses odiavam aquele objeto, por oferecer um desafio tão difícil, e era inviável achar um deles em qualquer loja tinha muitos anos...
- Você está bem, gracinha? – questionou Monique ao seu quase namorado – parece ter ficado pálido... – ela beijou a bochecha do jovem; o senhor Toy não gostou.
- Então, garotão! (Toy bateu as palmas das moças com força) Já mandei trazerem vários espetos para nos esbaldarmos! Hahahaha! Vamos de rodízio de carnes mesmo: Devore quantos filés quiser, eu vou pagar tudo, graças a Deus! Hahaha. – esclareceu o senhor Toy, visivelmente incomodado com o chamego de sua “pimpolha” com Moses.
Embora estivesse ganho um rosto de quem acabara de ter sido socado no estômago, o Youko juntou voz para fazer um comentário mínimo a Toy:
- O... Senhor não precisa pagar tudo, senhor Toy... Muito obrigado, mas eu trouxe algum dinheirinho aqui...
- Não e não, meu garoto! Hehehe! A minha borracharia está faturando bem faz meses e eu precisava de um domingo desses para comemorar o nosso crescimento! Que os buracos no asfalto continuem enfeitando Tenbrennan! Hã? Hã? Hahaha (piscadinha maligna)
Então era isso: Toy Hoshino era um dono de borracharia que se tornara endinheirado – e oportunista – através da “erosão” das vias públicas de transporte em Meladori; não seria estranho vinte ou trinta pneus e dezenas de suspensões furarem no meio do asfalto áspero dos bairros suburbanos por dia... Pobres são os carros que não são vacinados. (Só os carros?)
- Olhem lá, as carnes vem chegando! Oba! (outra batida efusiva de palmas) Comida!
Sem dúvidas: O Hoshino era um folião sem conhecimento de causa nenhuma. Além de Monique não ter puxado a ele em aparência, Toy não puxava para si um pingo de simpatia. Glynis prendeu os olhos silenciosos nele por um tempo; o jeito histrião de falar e gesticular, a possessão idiota pela filha e a ilusória sensação de controle da esposa espiã (pois Talula jogava olhares despudorados a um garçom e a um cliente, alternadamente) fazia um filósofo sentenciar que nem confiança em si mesmo ele tinha. O convite ao Miticake foi dado como um tiro de auto-afirmação para Toy; afinal, amizade com Moses não seria efetuada mesmo. Inclusive, pelo panorama existente nas córneas verdes de Lily, nem o namoro de Monique com Debiega engrenaria. Debiega...
- Mo... Mose... Quixote. Escute-me (respiração profunda): Pegue dois espetos de qualquer tipo e mastigue-os. Caso o palhaço aí reclame que está comendo pouco, diga que precisa aliviar o colesterol. Só mastigue e finja que engula, e só ponha na boca carnes! Faça isso, confie.
O que raios Glynis tramou? Moses não pôde mais pensar em plano quando os espetos de “picanha, contrafilé e alcatra, senhor” – “Perdão pela falta de galinha, na próxima ela virá”, foram derrubados em seu prato. Antes de suar frio ensaiando os cortes de garfo e faca, o Youko viu travessas de arroz e feijão na bancada self-service... Ali estava a salvação do seu apetite, caso tivesse salvação. Moses apertou os olhos ao colocar um pedaço de contrafilé em contato com suas papilas gustativas... Uma breve análise de seus sentimentos:
“será que esses facínoras sabem o que você sentiu, hein, boi? Será que eles gostariam de serem abatidos e servirem de bóia para gados? Nenhum de nós sabe como é... Desculpe-me por moer seu corpo, não repetirei essa selvageria... Nem perto de uma panela cheia de siris.”
Moses foi, heroicamente, seguindo o proposto; mastigando quarenta vezes um pedaço de carne e botando outro novo por quase quinze minutos, enquanto contribuía a uma conversa baldada do trio Hoshino. Quando decidiu chamar Lily para (alguma) ação com um duplo estalar de dedos, a ruiva tinha desaparecido de sua mesa. Ele iria delirar... Moses não ia agüentar a pressão de estar ingerindo a gordura animal e os temperos... Traía a si mesmo por uma menina sem saber se a amava. No que a sua garganta dilatou-se para abrigar o alimento, o ponto eletrônico murmurou:
- Prepare-se, Quixote: na próxima vez que eu disser “ai”, você abrirá sua boca como se atendesse ao seu dentista, entendeu bem? Estale os dedos.
Outro estalar. Outra preocupação: Lily aprontou algo grande. Ela não lembrou a restrição de Moses para não fazer nada constrangedor... Mas ali, o fundamental era Moses não jogar aquela carne em seu aparelho digestivo; ele ficou centrado, esperando a interjeição sair pelo aparelho auditivo. Inútil. Uma moça de vermelho veio andando muito depressa, com uma travessa na mão, e esbarrou feio na cadeira do Youko, fazendo-o cair. No impacto e durante a queda, propagou-se um “ai” no canto do salão, todos se viraram... Moses sentiu um beliscão e escancarou sua boca, cheia de chicletes de carne, deitado. Entre Lily (em cima) e o piso de mármore (embaixo).
Lily levou sua boca a de Debiega e o beijou por um segundo bem marcado.
Antes que Talula ou Monique olhassem para baixo da mesa, Glynis ergueu-se de pé; dois funcionários do Miticake vieram ao seu socorro, mas ela os tranqüilizou com a cabeça, - apontando para recolherem a travessa que voou - lambendo os beiços; Moses levantou-se totalmente após tirar a cadeira do piso também... Monique encarou a ruiva e depois o jovem:
- Você se machucou? Diz! Ei, garota, preste mais atenção onde pisa! – exclamou, com volume de voz moderado, Monique, limpando o Youko com o pano da mesa.
- Mil desculpas, senhores. Mil desculpas. Enrolei-me com as próprias pernas! – Lily pontuou a frase encontrando a face aterrada de surpresa de Moses. Ela mostrou a língua para ele.
Nojento... Moses havia se livrado do pecado interpretando um filhote de ave? Glynis passara a língua e feito “faxina” da comida. Ele teve uma sensação de alívio e asco em plena simbiose! Após a fala no ponto eletrônico minutos depois, o clima foi simplificado à preocupação:
Filho de Derek Debiega e perdição de Ruby Locke... Prepare-se: A partir de hoje, és o meu aliado para acabarmos com as Organizações Coaguro.
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