domingo, 31 de janeiro de 2010

[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO III


CAPÍTULO 3

UM ANJO FORA DE HORA



Ver a Youkoloko fixa no mesmo espaço de sempre, por uma distância de quase cinco metros, largou um amplo sorriso amarelo na face de Moses; Queria dizer que tudo vivenciado nas últimas horas era uma experiência mais do que real. Se para a maioria das pessoas com a faixa etária do Youko beijar um (a) desconhecido (a) seria a ação mais natural, - no código de ética das baladas - o ataque fulminante daquela moça com olhinhos mirrados e atitude poderosa era interpretado pela “vítima” como uma chance divina. Uma ressurreição espiritual após três tortuosos anos “de mal” com o Amor e seus departamentos anexos.
Trinta e seis meses de inexplicável e imensurável desilusão intrapessoal; Moses, antes de libertar os pés dos sapatos e (empoeirados com a “aventura” noturna), sentou na cama tomado pelo assombro, em vez de sossego. Submetido a um impulso cerebral opressor, como se estivesse incorporado, o rapaz supersonicamente projetou sua cabeça para frente e a segurou com ambas as mãos. Impedindo qualquer seqüência de acontecimentos chocantes, ele pôs-se a chorar, estatelado na cama. Sua mente estava rachada: Entre a garota ladra de ósculos e Ruby. Motivos condutores dessas lágrimas seriam somente dois... Junho fora o mês da morte da senhorita Locke – era a causa factual da “depressão aguda periódica” de Moses – e o quadro dela situado no fim do corredor, na parede defronte às escadas. A ausência dela, todo o tempo, foi pesada demais para o coração do Youko suportar. Talvez, o choro serviu como ”medida de alerta” do seu organismo para demonstrar alívio; a menina beijoqueira desconhecida mexeu com Moses para valer. Ele preparou-se para dormir só após de certificar-se 1000% que tudo não era sonho (pondo em contato uma pedra de gelo com suas costas). Satisfeito, a cama foi ocupada e o seu sono imediato.
Obcecado ou não, desde que a boca da menina desgrudou-se da dele, Debiega veio para casa escutando barulhos esquisitos e dissonantes, uma fusão feita por sussurros silábicos de um bebê adormecido com uma viola desafinada sendo dedilhada. À medida que Moses ia andando nas ruas, o barulho ficava melhor “produzido”, se ele pudesse descobrir à raiz daquela sonoridade chata... Será? Moses não faria mais nada na loja àquela hora da noite; o jantar na casa dos Codi tinha sido além das (nulas) expectativas e eliminar o tal ruído seria um bem danado aos seus tímpanos – já poupados de acompanharem o som “irado” da Banda Sinopse horas atrás, na Praça Rozendo. Resolvido: o veterinário caçaria a origem do problema.
Bastava saber a rua onde o volume estava maior... Era ao seu sudoeste; Moses deu um giro de 405º (uma volta completa para procurar e mais 45º para confirmar!) e avançou como um maratonista. Numa postura de “atleta de Cooper”, Moses deu de cara com uma alameda repleta de galpões abandonados... Pronto. Um legítimo cenário de filmes estrangeiros de suspense; um ambiente clichê garantido em qualquer final de ficções mal-resolvidas. O Youko não podia parar, porque sua barriga iniciara um tremelique digno de vexame (se estivesse ao lado de Yosef ou outro colega); tendo absoluta certeza de que não estava com fome, acharia o emissor daquele barulho e veria se, enforcando-o ou desligando a caixa acústica, suas orelhas e sua barriga encontrariam paz.

- SUA BARRIGA ESTÁ TREMENDO DE RECEIO...

O quê? De onde veio, para onde foi? Moses ficou consternado em um “clique” de uma voz que soou em todo o prédio-galpão que havia entrado; Gingou de um lado para o outro e nenhum feedback agressor ou amplamente assustador. “Receio”? Porque não medo? Agora sim, o rapaz sentia-se em maus lençóis! E o pavor de ácaro herdado de sua infância não faria nem cócegas em Moses, no momento em que subiu a área espaçosa do edifício... Algo que corresponderia a uma boa garagem, se aquele galpão ainda fosse ativo:


A figura pálida de Ruby Locke flutuava sobre a franja de Debiega. Adornada com um casco de cágado, asas de cisne e cheiro de carvalho.




- RUB!... RUB!... RUBY! Morte... Morta... Não... Existe!

Faltou só a cambalhota para Moses ganhar matrícula gratuita na Escola de Palhaços: A rodada desengonçada, a fim de fugir, o fez entrelaçar os tornozelos e “virar estrela” com a ponta dos dedos! Ruby acabou por bloquear (?) sua passagem para as escadas preocupada:
- Nossa! Tome cuidado! Não machucou seus dedos agora? – Moses viu o rosto de sua amada igualzinho a uma bomba de gargalhadas, com pavio fino.

- Sai... Sai daqui... Ninguém me engana... Isso está fora da realidade! Por favor, não mexa com a... Ruby... – O frio imperou na pele de Moses a partir daquelas palavras; no caso do fantasma de Locke estar ali mesmo, ele se considerou semimorto por algumas respirações. Até que Ruby encostou (??) sua mão no ventre dele e o sarou; em seguida, repetiu a ação nas orelhas.

- Eu só queria falar com você outra vez, Moses. Fui imprudente e morri tão depressa... Mas se soubesse que você ia ficar tão aterrorizado, eu nunca...

Já que o anjo falou, Moses, lamentavelmente – a partir do que Jeon haveria lhe dito - sentiu-se um covarde mesmo. Ter apenas “receio” seria uma boa... Entretanto todo aquele papelão, perante a presença sobrenatural de Ruby, evidenciou uma dedução de suma importância: O garoto ainda nutria um sentimento poderoso pela falecida; cuja adquirida carapaça de tartaruga acentuava mais as suas curvas! A julgar pela visão incrédula de Moses:
- Nem adianta levantar suas mãos e tentar me apalpar: Eu morri completamente!

- Co... Co... Como assim, Ruby? Não sei onde estou ou o que aconteceu para nós estarmos aqui, mas isso é obra do destino! Eu a vejo aqui agora, e... É como se o tudo e o nada perdessem o sentido para mim! Podemos ficar aqui juntos nesse prédio acabado eternamente!

O Youko exclamara todos os períodos chorando estuários... Nem ele e muito menos Ruby tinham condições de emendar a conversa após o desencontro das faces e das condutas: Enquanto Moses desabava sobre seus joelhos com as mãos no chão, arfando, Ruby voava para trás dele; sincronizando o peso do casco com a magnitude das asas numa coreografia desajustada.
- Quando disse que eu morri completamente, é completamente, Mô... Agora que estamos nos revendo, você poderá voltar a viver cem por cento, certo? – Locke estava muito calma; nada havia mudado desde o seu último dia viva.

- O quê você está falando, Ruby? Você está brilhando diante da minha cara, está cheirando ao carvalho onde adorávamos ficar e, o mais legal, eu creio que voltei a viver porque...

- Por causa daquela garota na Praça. Eu vi e sei tudo, amor... Sabe, há alguns mortos muito espirituosos... Mas só alguns. Rereré! – e Ruby escancarou o seu riso.

A risada cheia de sinceridade continuava imutável! Moses ficou maravilhado de vez com o espectro - metade réptil e metade santa - da ex-namorada. Ela tomou conhecimento da garota e do beijo; a temperatura no lugar esfriou e o clima de ciúmes foi induzido a aparecer. Apenas induzido:
- Essa menina, amor... Essa menina... Veio lhe presentear com um novo e diferente horizonte. Tenha fé que, daqui para frente, seu coração baterá mais rápido e sua mente se abrirá horizontalmente. Resumindo o nosso drama: Está livre de mim de forma oficial. Reré!

O cara que correu vários metros, subiu escadas de um edifício-galpão lúgubre e vinha com um incômodo horrível nos ouvidos, encontrou o espírito de sua namorada dando-lhe uma carta de alforria? Aquele dia foi fechado com chave de platina! Contudo Moses nem se importava em saber onde estaria a fechadura; Ruby e ele... Ele precisava dela.
- Perdoe-me, Ruby... Desculpe-me, amor... Eu estou em dívida imortal com você, e... Meu Deus, como eu fui ser tão burro daquela maneira?... – Moses Debiega ensaiou a choradeira novamente. O papo “arrependimento” conseguiu sobrepor à alegria apática no rosto de Ruby; a moça ficara séria.

- Esqueça isso! Esqueça-me! Esqueça tudo do... Do passado. Memórias apenas decoram museus e melhoram debates, a Youkoloko graças a Deus está em plena atividade! Por que você precisaria de uma namorada-fantasma, Moses? Eu estou com uma casa de tartaruga nas costas! – E Ruby socou – de leve – a “rocha” onde suas penas de cisne estavam fincadas.

- É... Amor, isso é um casco de cágado... Eles parecem cogumelos; o das tartarugas de água salgada tem um desenho mais poligonal.

- Rereré! Tá bom! Você não muda seu jeito corretivo, querido.

Ouvir o “Querido” foi a música mais doce que Moses já apreciou; no que ele avançou em um passo, disposto a tocar em Ruby, ela simplesmente esquivou-se com um movimento de cabelos pretos. De qualquer modo, Moses iria catar um punhado de vento.
- Não repita isso... Não se canse por algo impossível. Volte a ser racional, Moses! Confesse que nunca me amou tanto quanto eu amei você.

- Errado.

- Como é?

Até a casco de cágado pareceu ter oscilado da posição quando a “ensolarada” Ruby captou a resposta do Youko; ele disse com convicção, olhando nos olhos sem piscar e com a voz reta. Locke parou de flutuar e desceu ao chão (???).
- Eu sempre precisei mais de você do que ao contrário, Ruby... Você foi o primeiro ser vivo a ter uma afinidade inquestionável comigo, a única pessoa capaz de quebrar a coluna (apontando para o casco) a fim de tentar compreender as minhas palavras... A pessoa que me motivou a trabalhar a cada dia mais, a fim de tornar-me apto a cuidar dos negócios do meu pai... Sem sua existência aqui, Ruby... Eu seria... Um mísero holograma na Terra.
- Idiota! Que é isso de holograma?... Você é um homem especial, eu sem você é que seria uma tragédia... Amor, sem você eu jamais aprenderia a viver, a sair de casa! O Sol me ofuscava, não é? Você me valorizava e é exatamente isso que não tem preço. – Ruby falara como alguém de garganta engrolada; lacrimejando.

- Resumindo o nosso drama: Você era insegura e eu incompetente. Nós nos completamos, Ruby. Só que autoconfiança se ganha através de um erro, e o senso de competência através... Através... De um desastre.

Moses voltou a prostrar-se de joelhos; ele devia notar que Ruby odiava esta postura:

- Eu... Eu entendo... Saiba que eu sempre estarei olhando você também, amor... Meus pais ainda não guardam boas recordações de você, mas... Viva a sua vida vislumbrando uma nova Era. Está certo?

- Ruby... Por que essa carapaça de cágado nas costas?

- Eu não fui santinha aqui na Terra... Então, essa carapaça eu recebi como uma penitência em nome dos humanos vivos que maltratam a Natureza ou agridem a biodiversidade... Não se preocupe, as asas dão muito conforto na mobilidade, e o peso dela não é t...

Moses voou com os seus lábios na direção da boca de Ruby. Caiu de queixo no chão e a alma jovem ficou sem fala.
- Que beijo roubado mais furado! Rerereré! Um ladrão assim ia preso sem levar nada!

- Vamos passar essa noite juntos; aqui, nós dois... Ruby... Por favor. – Moses já estava com “chatice de bêbado” praticamente.

- Quanta teimosia, Mô! Eu não disse a você que a garota da Praça deve ser sua prioridade? Se quer uma mulher nesse momento, ache uma viva... Que tal a Sabrina?

- Deixa de bobagem, Ruby...

- Puxa, eu poderia trazê-la aqui...

- É sério?

- Sim. Mas você teria que esperar aqui enquanto eu irei voando...

- Não. Eu vou com você a todo lugar. Não quero te perder de vista mais.

Era constrangedora a posição que Moses adotou: Caiu de quatro no chão e, engatinhando, quis agarrar as pernas de Ruby (ali, apenas panos da saia “de luz” dela). Ela nem se lembrava de tanta vassalagem amorosa durante o relacionamento.
- Sabrina... Ela não é garota para mim, nunca foi e nunca será... Eu não alimento vaidades ou... E você sabe bem disso. Ela não chega aos seus calcanhares para mim, Ruby.

- E como fica a menina ladra de ósculos?

A quase garagem do galpão teve parte da luz sugada pelo vácuo; Mas Moses estava indiferente a sua proximidade atual da Terra ou mesmo de algum buraco negro. Uma decisão deve ser tomada:
- Ela ficará mal: É óbvio que eu gosto mais de você! E mais, se eu morresse aqui e agora, ficaria do seu lado para sempre e sempre!

Ruby agitou os punhos e preparou a sua direita para um tapa. Moses, instintivamente, andou para trás pondo as mãos estendidas protegendo seu rosto; porém ambos perceberam que, se ele não podia tocar num anjo, o inverso também valia.
- Você jamais diga isso de novo também. Senão eu vou te amaldiçoar ou sei lá o quê... Por favor, não fale isso de novo. Tu és muito importante para o nosso mundo! Você poderá desequilibrar na reconstrução da nossa sociedade... Eu vejo um futuro muito brilhante seu... Que não está somente baseado na Medicina Veterinária: Acredite em mim e, principalmente, em você.

- Você vê um futuro?... Hahahaha! Você ganhou mesmo superpoderes?! Demais! Então anjos podem conjurar ou buscar qualquer pessoa, prevê futuros e cheiram as árvores de carvalho. Eu sou o dono de um centro veterinário chamado Youkoloko, Ruby... No quê eu vou servir para a revolução da sociedade?...

- Em primeiro lugar, “superpoderes” (Ruby “aspeou” a cabeça com os dedos) é um termo muito exagerado... Na verdade, eu só consigo executar um truque dito inimaginável:
Locke juntou as palmas de suas mãos, forçou as expressões da face como um indivíduo que acha um banheiro após devorar alguns bombons, e ofereceu a Moses uma casquinha de baunilha! Moses lambeu o creme antes de ficar chocado... Pela reação, achou uma delícia.
- Por que... Por que... Sorvetes?

- Porque eles estão bastante ligados a minha felicidade terrena. Esqueceu que eu adorava? Eu devo ter outras habilidades... Meu problema com a luz pode me permitir manipular sombras ou algo assim... Mas ainda não desenvolvi; cheguei muito nova lá... Pouco sábia...

- Eu não quero te deixar agora, Ruby!

- Deixe de pieguice... Ela não faz o seu estilo. Sua juventude irá acabar juridicamente daqui a poucos dias, entende? O dia 19 de junho já está chegando, e... Você deve aproveitar esses próximos dias de “liberdade juvenil” para checar o que o levará a viagens de verdade. Experimente delírios! Faça o improvável! Não use a função conativa com os outros! Viva, amor.

- Deixa de ser sistemática... Ela me faz enlouquecer por você! Dia 19 é... É... Maldição! É mesmo o meu dia! Você sabe, eu perco o rumo por causa da culpa justo nestas desgraçadas 24 horas... Meu desejo era só... Pedir-te perdão!

Ruby não segurou o choro e sua face bem esculpida começou a parecer bem úmida. Iria ser difícil para ela separar-se de vez então; mas um dever era um dever para vivos, mortos, anjos e cágados.
- Pelo poder em mim investido, lhe declaro perdoado... Tenha um feliz aniversário adiantado.

-... Só isso?

- Eu estarei enchendo o seu saco sempre que puder... Encontre-me abaixo da sua estrela, amor. - Ruby Locke virou e aproximou-se da vidraça grande de vidro, na parede do galpão. Cabisbaixa.


Moses se deu o trabalho de gritar, mas sua voz se perdera; Nem uma dor latente a sua garganta tinha... Deixando-o mais angustiado ainda. Por que parara de sofrer após o perdão aceito por Ruby?


Tanto faz... O sonho se acabara e o Youko piscou os olhos, enxergando o teto vazio de seu quarto. Toda a lembrança do ocorrido grudou na sua mente e tudo indicava que lá iria permanecer, até a data do vencimento de sua vida. Ruby estava no céu manuseando sorvetes? Ruby flutuaria pelos corredores da YL com uma carapaça de cágado? Jamais Aizaiah ou Yosef seriam privilegiados com a trama desse sonho, pois era maluquice... Até o paladar e o tato estavam envolvidos na maluquice; E configurava no senso comum – em algum parágrafo rasurado da Constituição universal Humana - que nenhum dos cinco sentidos aparecia durante nosso caminho pelos abismos do sono. Pois bem, a “Assembléia Constituinte” poderia rever seus conceitos ou agendar uma reunião com o Amor.
O corpo cansado de Moses apenas aumentou seu grau de fadiga; aquele sonho fatiou a sua “carcaça” e a parte reacionária de seu cérebro... Mas o seu coração mantinha-se batendo forte, pulsando constante... Ele imaginou que, no mínimo, o músculo ficaria “suado”, porque sentia uma comichão atípica na área esquerda do peito. Embora um pouco preocupado, estava bem contente... Estava vivo indubitamente, com todas as letras. E maquinava já as suas atitudes para o Sol que ia raiar dentro de uns minutos: Reuniria informações sobre todas as garotas “forasteiras” que estavam no Evento da Praça Rozendo; daria um jeito de rever a garota e conquistá-la. Afinal, Ruby surgiu e falou dela sorrindo! Sem ressentimentos! Se fosse preciso pedir desculpas para Win... A substituiria por: ”por favor, cara, ajude-me!”: o pedante geralmente falhava com ele... Win relevaria qualquer revelia também.
Colaborar com a mudança na sociedade... E “aquilo” pode ser mudado? Quem ajudaria Moses a colaborar... Além de Aizaiah? O veterinário só tinha certeza de uma coisa: No momento em que pegasse o paradeiro da ladra de beijos, ficaria íntimo de uma outra realidade... Sem máscaras e sem carapuças; E claro que não sabia se explicar corretamente por quê. A reflexão mais lúcida de Moses foi: O início do caos estaria em pauta assim como a gênese da Revolução.
Conclusão boba. Trivial. Pouca Ruby no raciocínio.
- Vou pegar um copo de água. – falou sozinho o garoto.

Dando de cara com o corredor, Moses avistou o quadro de Ruby como de praxe. Sim, não estava mais iluminado ou mais trevoso que antes... Sinal que a lenda dos “sonhos com espíritos” tinha sua porcentagem de balela. Todavia, no retorno do trajeto cozinha-quarto, ele parou e deu um zoom no picolé de Ruby: Visivelmente havia mais pingos escorrendo do gelo industrializado do que Moses nunca contara. O tempo passou rápido... E o Amor não o temia de jeito nenhum. Os homens poderiam aprender muito com o Amor se a reunião excepcional da Assembléia se tornasse realidade. Mas, fortuitamente, os donos da ética dormiam embaixo da terra agora e todos os departamentos de atendimento do Amor eram inimigos pacifistas da Burocracia.


Quer dizer... A filha bastarda do Tempo.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO II



CAPÍTULO 2

BASTA UM PRETEXTO




Que sonoridade afável a da campainha dos Codi... Os ouvidos de Moses se chocaram com aquelas ondas e encolheram: Ele não curtia mesmo música, não importando o estilo ou a qualidade delas; mas, tal “clique”... Uma melodia suave e ressonante, alardeando 100% de contraste com o mundo urbano, e cinzento, cujas pessoas – em geral - estavam misteriosamente habituadas.
- Vó! O meu chefe já chegou. – O “chefe” escutou, através da porta, um Aizaiah de voz difusa. E lá vinha o barulho das chaves:

- Boa noite, cara. Como vai? – Aizaiah cumprimentou verbalmente e gestualmente, com um aperto de mão na horizontal a La adolescente de escolas públicas meladorianas.

- Perdão: Como foi, não é...? Lá na festa, haha. Entre, sinta-se na Youko. – O jovem amigo de Moses mantinha a face enigmática costumeira, no entanto, recepcionar e acomodar as visitas com naturalidade – a arte de “fazer sala” – fora praticamente inventada por Aizaiah!

Três pessoas adentraram a sala de estar onde Moses havia “se acomodado” - no sofá mais chique que já viu - além do assistente veterinário: Um homem meio barrigudo, sem problemas visíveis de calvície, postura exemplar e muito bem arrumado; Uma mulher de cabelos curtos (imagine como seria um “corte militar” feminino), com olhos negros bem brilhantes e um corpo maduro bem conservado; e uma senhora de vestido simples, com um distinto broche no peito - em forma de uma folha de árvore – e um distinto sorriso apreciativo na direção de Moses; Que, tirando o fato de ter se arrepiado levemente quando a vovó Codi o olhou, permanecia recriando (ou fantasiando) a cena ocorrida minutos atrás na Praça Rozendo. A moça teria que aparecer de novo.
- Boa noite, senhor Debiega. É vergonhosamente emocionante revê-lo após tantos anos. – cumprimentou a Vovó, acercando-se de Moses e passando sua mão enrugada nos cabelos dele. – Acompanhe-nos, por favor. Vamos jantar logo.

Até que a senhora era bem lúcida... Moses andou “bambo”, acarretado pela fadiga acumulada nas pernas – depois do seu sprint radical – e sentou-se ao lado da Matriarca dos Codi: A senhora substituiu o pai de Aizaiah na cadeira central da mesa de jantar. Ocasião especial mesmo:

- Bom... Esse ano, só posso iniciar este jantar de despedida com uma interjeição: Aleluia! Uma pessoa ligada à trajetória da nossa família – de maneira indireta, podemos dizer assim - está reunida conosco para termos um momento incomum e abençoado... Coisa que, infelizmente, vocês não presenciavam há muitos séculos, não? – a Vovó conduziu sua crítica feroz na cara do pai de Aizaiah. Sujeito que, na teoria, deveria ter os culhões dentro daquela casa...

- Mamãe... Não é necessário toda essa...

- Nem vem com essa, filhinho. Você é um triste reflexo desta nossa sociedade: é só o trabalho de lhe fornecer um copo de cerveja e uma televisão enorme, passando o sagrado futebol, para você esquecer uma vida inteira; idolatrar a zona de conforto é o pior pesadelo que um ser humano pode encarar... E, vocês dois sabem melhor do que ninguém o que falarei agora (a Matriarca apontou para a mulher de Jerry Codi e Aizaiah): Meu Jerry perdeu de propósito a si mesmo quando... Bem, vamos nos servir, certo?... Moses, você não vai deixar de ouvir o resto desse discurso, fique tranquilo.

Se Moses ousasse recordar uma passagem de sua vida onde estivesse tão chapado por sua parte emocional, não acharia semelhante à sensação que o asfixiava ali, no “pré” jantar com os Codi: A Vovó possuía uma capacidade argumentativa aterradora e um poder de síntese para pensamentos... O Youko começou a confessar - a si mesmo - que estava ficando assombrado com a austeridade da velhinha. Entretanto, simultaneamente, tais demonstrações de força perfuraram a consciência de Moses tal que ele pressentiu algo bom iminente... Como uma prestativa reforma.
- Você aceita um pouco de caranguejo, Moses? A receita é do seu pai. – A Vovó, com o jeito mais ingênuo do mundo, retirou o plástico protetor do maior recipiente na mesa e o inclinou, ajudando Moses a “dissecar visualmente” o prato: Um molho viscoso dourado banhando pedaços de carne clara...

O cheiro dos temperos que figuravam na receita tinha um poder anestésico devastador; Moses simplesmente quis estender a mão para pegar um pedaço e provar, mas deteve-se: O pai dele que inventara aquele prato? Derek teria coragem de enfiar caranguejos vivos numa panela fervendo de graça, sendo ele um vegetariano defensor xiita dos animais? A única explicação que o herdeiro arranjou foi para o plástico que envolvia a vasilha: A conservação da temperatura contribuía para a concentração do sabor, e a temperatura fez um grande trabalho... Pois ele ingeriu um pedaço e não parou mais de repor ao seu prato; obviamente, servindo-se com doses de ética alimentar (Moses escondia seus costumes veganos enraizados até de Aizaiah).
- Vejo que foi acertada a escolha de acrescentar o siri do Pacífico no jantar, hein, mãe? – falou Jerry Codi, no outro lado da mesa, quebrando as possibilidades de um previsível – e restrito - diálogo entre Moses e a avó de Aizaiah.

- Quantas vezes eu já disse que o nome desse prato está errado, filhinho?! Isso é outro tipo de caranguejo, e não o siri! Onde você já viu um siri deste tamanho? – argumentou a senhora, apontando, com um indicador bem rente, o prato recheado de “siris” de Jerry.

Os talheres de Moses interromperam o trajeto boca-comida para o seu condutor ficar, de novo, boquiaberto com a sapiência da “velha”: A alegação divergente entre siris e caranguejos normais dar-se, primordialmente, pelo tamanho era inteiramente verídica! Mas o rapaz achava que, para saber daquilo, a(s) pessoa(s) deveriam ter um interesse grande por biologia e ecologia; ou serem bastante curiosas com conhecimentos gerais. E ela era uma senhora de idade! Para quê absorver informações tão vãs quanto “anatomia de crustáceos” aos 80 anos?
- Além do mais, o nome não vem ao caso mesmo. Então, Moses... Como está a loja do seu pai? O remendo no assoalho continua balançando o segundo andar?

Estava mais do que hora de Moses perguntar o nome da vovó:
- Puxa, não... Desculpe-me, madame... Mas posso perguntar o seu nome?

- Ora, você já soltou a pergunta! Hahaha. Jeon é o meu nome. Para efeitos de preservação da sua memória... O prazer é todo meu, hahaha! – Jeon exclamou estendendo sua mão a fim de Moses a cumprimentá-la, em tom de pura brincadeira. Dando a oportunidade ideal ao início da troca de ideias:

- Você... Quero dizer, a senhora viu o meu pai quando ele era mais jovem? Ops, perdão... Era uma cliente assídua da Youkoloko, senhora Jeon?

Moses nunca se sentiu tão constrangido em ocasiões formais: Tamanha confusão em coordenar perguntas e comentários era de praxe; porém aquele dia ganhara o título de especial com pompa e circunstâncias... Sua alma estava diferente depois o ataque da “menina ninja” e já lograva total ciência disso; mas daí a persistir na gagueira era demais... A lentidão espiritual deve desvanecer junto com a verbal.
- Relaxe... Não fique com essa cara de derrota, Moses. Seus questionamentos são honestos e racionais! Afinal, você nem sabe de onde essa velha que te fala veio e, mesmo assim, está ouvindo alguns fatos sobre o seu pai. Derek. (suspiro) Um sujeito que defendia os seus princípios como ninguém; e, no entanto, detinha um grau de vaidade decepcionante... Isso a meu ver, lógico. – completou sucintamente a senhora Jeon, ao notar Jerry terminar de triturar seu caranguejo e preocupar-se em (contra-) argumentar o que ela desferia.
Moses prestou cuidados em uma palavra destacável: “Princípios”. O que seria “princípios” para Derek e Jeon? O que a velha Codi entenderia por ‘propósitos’? O Youko pressentiu que iria divertir-se durante todo o jantar, caso estabilizasse seus pensamentos. Melhor, só a sua voz:
- Senhora Jeon, por um acaso, a senhora conheceu a minha mãe? Ai.

Tal “Ai” proferido por Debiega não foi por nenhuma sensação dolorosa; a não ser que a idiotice seja uma doença com sintomas evidentes. Após a interjeição, Moses abaixou a cabeça como um soldado que acabara de empurrar, sem querer, um general.
- Hein? A sua mãe? Sim. A conheci.

O retorno daquela frase lacônica foi a abertura angular das córneas de Moses, indicando um estado de espanto; era bem verdade que esse é o primeiro diálogo entre Jeon e ele, até então dois seres conectados por um passado difuso, mas... Ela só respondeu a pergunta? “Sim” e “não” jamais abrem ou fecham portas, pois são grossas demais para trancar fechaduras.
- Ah... Legal. Então, conheceu sim...

Haja segundas intenções nas reticências de Moses... Era o fim da linha para ele. Um interrogatório decente partiria dessa sentença: “A madame conheceu o meu pai antes de ele namorar a minha mãe?” ou até “O senhor Codi era amigo do meu pai há desde a infância ou conheceram-se no colegial?” – O que estimularia, assim, a memória de Jeon referente a juventude de seu filho (de forma implícita, a etapa da vida de Jerry inesquecível para a vovó).
- Falar de Ava não me agrada nos dias atuais, eu acho... Mas posso lhe comunicar várias lições de vida que o seu pai acabou dando a mim, pena que ele faleceu sem saber disso. – a Matriarca alterou as feições de seu rosto disfarçadamente, mostrando receio de despir a sua tristeza para Moses e a família.
Entrementes, Moses havia esquecido metade da fisionomia da garota na Praça Rozendo. Entretanto, odiando o “esquecer” como o veterinário, afirmar se este pormenor é benigno ou não seria um trabalho obtuso; O importante ali era apurar os tímpanos a fim de tirar consciência de cada frase, daquela mente cativante de Jeon, sobre as “lições” de Derek... E, sim, mastigar a comida.

- Vejo que todos nós estamos terminando o jantar. Seria antiético da minha parte dar uma de eloqüente, ou prolixa, minutos antes de organizarmos uma fila em frente ao banheiro... Serei direta, querido Moses: Sabe qual é a diferença entre o piche e o grafite?

- Oi?

Moses queria ouvir um pouco da história de seu clã, e não informações da arte marginalizada urbana; Então Jeon estava caducando!...
- Hehehe, não pense que estou caducando! Não... Esta é a melhor analogia que eu encontrei para dissecar as virtudes do seu pai, em comparação as de Jerry. – Jeon apontou com os lábios murchos – com um quê de desprezo – para o outro lado da mesa; Aizaiah e sua mãe, que não abriram desde a “revelação” dos alimentos, finalmente adotaram um semblante mais antenado à conversa que se seguiria:

- Puxa, madame... Ainda... Estou sem compreender.

- Bem, você é universitário, certo? Concluo naturalmente que você saiba que o piche é um crime e o grafite é um trabalho fundado no desenvolvimento contemporâneo da pintura, que é uma forma de expressão artística. Ou mais ou menos isso, certo? Hahaha.

- Bem... Sim, sim. Faz sentido. Piche é ruim e grafite é legal. Sim.

- Aí é que está o interessante: O buraco é muito mais fundo. Você acha que um pichador teria chance de tornar-se um bom grafiteiro?

- Se pode tornar-se um...? Nunca... Nunca pensei nisso. Pe-pela lógica...

A guarda moral de Moses ficou escancarada depois dessa hesitação, Jeon piscou devagar os olhos e iluminou a sua garganta, visando a luz do lustre na sala de jantar:
- Por favor, nada de lógica. Irei explicar a vocês (virou o seu rosto sorridente para Aizaiah, Jerry e a sua mulher) claramente: Um pichador tem todas as possibilidades de virar um grafiteiro, desde que abandone as latas de spray.

- Mas... Por quê? Sem o spray...

- A vida de uma pessoa que suja as ruas com aqueles inscritos complicados é mais cinza do que tais atos infratores, Moses... Por exemplo, o pichador que se preze nunca sente medo de ser pego pela polícia e nem por algum civil, armado, que venha a se sentir lesado por ele; por causa da velha máxima do “eu não tenho nada a perder, já estou condenado a um futuro infernal”. Pois é... Acho que esse pensamento é ridículo.

- “Ridículo” Vó? Mas é a conclusão mais unânime do mundo! O marginal faz bobagem porque a sua vida é péssima em todos os aspectos, então, ele vai perdendo a sua alma até “morrer” psicologicamente... É o autoflagelo. – Eis que Aizaiah surge no meio do bate-papo de duas vias, propondo um caminho alternativo; o tipo de pessoa que faz a diferença na balança.

- Exatamente, meu amor... Autoflagelo é a palavra. O cara que picha muros pode ser um doente, um viciado, uma pessoa sem condições de moradia ou comida... Etc. Porém podemos pegar todos esses motivos e condensar em um só: Desestrutura familiar. Hoje, os jovens e seus responsáveis... Não falam muito de guerra.

- Perdoe-me, madame Jeon... Como falar de guerra? Guerras influem na educação?

Pelo olhar atordoado e intrigado, a garota da Praça tinha sido obliterada da cabeça de Moses. Melhor dizendo, até a história do pai dele estava no “plano de fundo”: Assistir a velha Codi ilustrar o seu raciocínio era uma atividade revigorante e – riam – sedutora.
- Quando você almeja prosperar plenamente em sua jornada, você tem que preparar-se para a guerra. Porque todas as virtudes de um grande soldado serão as únicas armas que vão acompanhar você para sempre: Coragem, iniciativa, humanidade, decisão, austeridade... E, como não poderia faltar, sentimento. Embora... Hoje, nós chamamos de “feeling”, pois por incrível que pareça, esse termo melhora bastante a nossa concepção. Hahahaha!

Neste momento, os olhares de Aizaiah e de Moses encontraram-se; e se depararam com um par de sobrancelhas arregaladas também. As coisas ganhavam contornos de bom senso afinal:
- O pessoal que, infelizmente, possui uma formação fraca e uma falta de cuidados da família quando pequenos... Tendem a serem pobres. Não só de grana, mas também de espírito. Às vezes, os que conseguem enricar com dinheiro jamais obtêm a mesma proeza em relação aos valores morais; estes tipos de pessoas formam a massa dos medrosos. Aqui na nossa terra não são poucos, hein. – alertou, em tom de recordação, Jeon.

De fato, a quantidade de pessoas que batalhavam todo dia “por um lugar a Lua” (A fila para as vagas no Sol já estava estagnada) na Terra de Moses é absurda. A concentração de terrenos e rendas era tão desequilibrada quanto a índole de um psicopata; e, não importando o número de vezes que se ouvia: “o governo é o culpado... X é culpado... Y está nos roubando...” no país, nada o povo fazia a respeito a fim de corrigir as desigualdades e as explorações. Um monte de covardes...
- Moses e Aizaiah, não cogitem a ideia de rotular o povo daqui como “covarde”...

Como?

-... “Covarde” usamos para designar um homem que faz engravida uma mulher e foge, para xingar alguém que bateu gratuitamente num ser indefeso, nomear quem furta bens materiais aproveitando-se dos bons sentimentos dos outros... Enfim, “medroso” e “covarde” tem uma diferença quase abismal no nosso caso: O medroso é obrigado a encarar uma guerra sem estar preparado; o covarde, ao entrar numa guerra, morre. Só há um ponto em que ambos concordam... O da exploração dos recursos da natureza; Como um resultado previsível, o mundo conspira contra o medroso e contra o covarde por ameaças idênticas. Sacaram? O MUNDO CONSPIRA CONTRA (Jeon falou com tanta potência na voz que conseguiu tatuar esta frase no ar).

Os garotos perderam suas vistas nos porta-retratos dispostos na mobília... Fora um monólogo deveras profundo. A questão do grafiteiro e do pichador ainda não estava resolvida.
- O objetivo de um grafiteiro é simplesmente mostrar sua capacidade de guerra; a sua iniciativa de combate... Sua técnica de deixar uma marca – qualquer que seja – significativa ao mundo. Marca essa que Derek cansou de realizar, Moses. E você pode fazê-la perdurar.

- Meu pai?... Deixou uma marca particular aos olhos do mundo? Onde? Será que algum registro de jornal velho na minha casa? – Moses ergueu de um salto na cadeira... Ficara tão atraído com o linguajar moderno de Jeon – focado no assunto discorrido – que se esquecera do seu pai, da garota, do Quack... Era como estivesse “se traindo”. Voltando para casa, ele verá alguma c...

- Hahahaha! Ai, Deus. Seu pai não virou uma personalidade, Moses... Quem disse que “ser famoso” é pré-requisito para tornar-se indispensável no Planeta? Hehehehe! Prova disso são esses cantores horríveis que castigam nossa televisão ou rádios sem parar, atualmente... Com certeza, eles não entrarão em muitos livros de história.

- Mas ele, meu pai... Trabalhava de biólogo... Após isso, virou um veterinário. Então?...

- Derek Debiega tinha um talento invejável: O de tratar de animais. Ele dedicou muitos anos elaborando receitas para remédios, rações e acessórios que viabilizassem o melhor contato entre os homens e os bichos. E não basta isso tudo ser reconhecido por muita gente “do ramo”; Debiega executava suas tarefas com paixão, estudava com afinco; quando projetava algo em curto prazo, teria que ser em curto prazo. Sem burocracia, sem vícios... Não vivia pelo amanhã, buscava as bênçãos divinas no sagrado “hoje”. Odiava ser medroso até em assuntos em que era leigo, sabia um pouco de tudo para informar e interagir bem com vários tipos de gente... Ter preguiça não era um pecado para ele, e sim um sintoma do medo. Acomodação serve para o bem e para o mal... Por isso é tão chato ficar parado. (pausa com suspiro)
- A nossa guerra pessoal não pára jamais, sempre inconstante, sempre lapidante... Contudo, se você ousa desafiá-la contente, brigar disposto a se machucar, a evolução acontece. O aprendizado é a chave e o crescimento é o cadeado. Não basta o “sim” ou o “não” para nossas escolhas. Decidir era o que o seu pai dominava de forma mais astuta. Vivia preocupado com a melhor opção a ser tomada... Foi uma pena que as suas preferências o traíram.

- Preferências? Quais preferências, senhora Jeon?

Jeon abriu a boca e mostrou a língua esbranquiçada, como se acabasse de ter gritado um palavrão automático, em três segundos. O jantar estava terminado.
- O pichador só torna-se um grafiteiro quando abandona os sprays, sim... Pois ele precisará reconhecer as cores e as nuances respirando outros ares, a fim de achar a inspiração para viver. Revendo a “palheta” de cores - divergentes das habituais preto, branco e cinza - e assustando-se, ele ficará perdido na arte... Apaixonando-se pela aquarela, a arte encontrará abrigo nele. Nesse mundo, o amanhã será constantemente a maior das desculpas, jovens. Não esqueçam.



Foi um balde de água congelada nos Youkos a conclusão "anticlímax" de Jeon, mas Moses ainda vislumbrou o valor daquelas palavras depois dos abraços de despedida em Aizaiah, na mãe dele, na vovó Codi e - principalmente - de Jerry... Que o abraçou chorando bastante (estranho). A Matriarca piscou para ele; talvez torcendo para que, diante daquelas amostras de prolixidade ouvidas, Moses não virasse nem um pichador, nem um grafiteiro e muito menos um covarde... Mas que somente deixasse de ser um medroso falso.
A garota misteriosa roubou o lugar de protagonista novamente, na mente do rapaz, ao primeiro pé de Moses fora da casa. E durante as passadas cambaleantes e barulhentas de volta para a YL, Moses eliminava um fiapo, de algum caranguejo obeso, em seu dente molar... Lembrando-0 de um gostinho insano - porém viciante - de "segunda casa" a cada virada de pescoço para trás. Um "passarinho" nervoso em seu cerebelo o cutucou; devia exercitar um outro pensamento até ir deitar-se:



Jeon não teria conhecido Ava muito bem: Apenas a teria abominado.


[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO I






CAPÍTULO 1


A ABSOLUTA URGÊNCIA DO AGORA




O telefone de Yosef está ocupado e Moses não pegou o número do celular dele. Aliás, o fato de Moses não saber nem manejar um aparelho de celular serve de justificativa para a falta de interesse em tal código. A idéia era passar ao amigo o imprevisto que havia surgido, graças aquele convite de Aizaiah, gerando a possibilidade da não-presença do herdeiro Debiega na Praça à noite. Moses regressou à loja (ao térreo) e chamou seu auxiliar para contar o que, outrora, seus colegas estavam combinando sobre a festa de caráter mais superficial que o surpreendente jantar:
- Aizaiah, eu tentei falar agora a pouco com um amigo meu a respeito do jantar... Porque eu pretendia ir à festa na Praça Rozendo, você sabe...

- Eu te falei que a reunião lá em casa será só às dez e meia da noite? – Aizaiah perguntou com um tom tão despretensioso que provavelmente, por vontade dele, tanto faria se Moses fosse a sua casa ou não fosse. Informar à Moses que poderia comer em sua casa e ver a família Codi fora uma missão que a sua avó o incumbiu.

O “patrão” captou a mensagem interrogativa morna de Aizaiah como se a frase, nua e crua, já orientasse uma decisão simples: “Se você quiser ir, vá; Se não quiser, ninguém vai obrigar”. Só não quis iniciar uma conversa prejudicial aos dois pelo simples caminho que se abriu. Agora estava viável bancar o social e visitar os conhecidos das épocas pueris. Não lembrava como era a fisionomia dos pais de Aizaiah, muito menos se o velho dele tivera aparecido na Youkoloko após a morte de Derek. Certamente, ter um flashback de memórias inativas, quando sua própria vida não anda pelo trajeto mais empolgante do mundo, parecia uma grande pedida. O Sol se pôs e Moses tratou de tomar um banho demorado, colocar a melhor roupa (segundo ele mesmo) e passar perfume. O encontro com Yosef, Win, e quem eles carregariam para curtir o lugar, seria às nove; dessa maneira, Moses dispõe de uma hora e meia a fim de “chegar junto” em Sabrina e de todo o apoio dos seus amigos para atingir esse feito; Um suporte espetacular de fornecer piadas sobre a conduta de Moses (ou Sabrina) durante a conversa e as fofocas de tal encontro pós-evento - tudo numa posição saudavelmente afastada do garoto e de seu alvo, claro. Aizaiah já tinha sido dispensado do expediente, e fechado o estabelecimento, dando antes a confirmação do seu endereço à Moses. A casa dos Codi situava-se seis quadras ao norte da Youkoloko, deixando o convidado concluir, pelo mapinha rabiscado por Aizaiah num pedaço de papel, que ficava a menos de dois quilômetros da Praça. Por um instante, Moses mentalmente visualizou que esse atribulado final da sua sexta-feira parecia ser fruto de uma conspiração organizada pelo tempo, pelo espaço e pela associação de moradores de Justine. Que imaginação! Moses largou de mão seus devaneios e foi repor logo a comida dos hamsters... Com tudo certo dentro da loja – não contando os velhos problemas das paredes verde musgo descascando e minúsculas infiltrações – Moses saiu pela divisa do portão e encarou a escuridão crescente do céu. Estranhamente, a noite pareceu ter aparentado vontade de retribuir o olhar cuidadoso do rapaz para ela, exibindo, acontecimento logicamente incomum no meio urbano, várias estrelas cintilantes diante dele. Caramba, até o cosmos estaria envolvido numa conspiração?

Chegando perto da Praça, tudo o que os olhos de Moses absorveram foram luzes coloridas. A comprida Rua Rozendo estava enfeitada com muitas faixas vermelhas cuja face e frases do religioso apareciam emanando toda a dignidade dele, que era conferida ao padre pelos livros didáticos de história, e com fitas, crucifixos... Todo um aparato capaz de ambientar uma via pública igual a uma Igreja em períodos de celebração. Ao fim da Rua, o largo circular (um lago aterrado) que constituía a Praça, propriamente, perdera visualmente sua forma: Dezenas de barracas anunciando salgados, doces e bebidas ocupavam os pontos periféricos do lugar; e indicavam que não ficaria apinhado apenas de pessoas com barrigas vazias. No centro da Praça, havia uma estrutura armada e instrumentos musicais reluzentes (“tomara que a banda do show não seja ruim” – pensou por um segundo Moses), porém não iluminava tanto quanto as novas lâmpadas dos postes num raio de cem metros – medida do diâmetro da Praça – que exibiam e coreografavam tons de azul, verde, laranja e vermelho ao longo do evento e divertia desde as crianças de colo até os senhores que, praticamente, moravam naquelas mesinhas de xadrez da Praça e, no momento, estavam nos bares das duas esquinas tangenciais ao círculo. O número de pessoas no evento aumentava e o espaço diminuía a cada minuto, Moses partiu para o bar da direita (bar de clientela formada por uma quantidade menor de idosos) e apurou a vista para analisar todas as mesas. Geralmente quando Yosef arrumava-se melhor; passava gel no cabelo e apresentava roupas chiques e bem passadas, nada a ver com o look dele normal na faculdade - de cabelo afro, óculos grandes e camisas largadas – e Win, bem... Quando ele queria impressionar a sociedade colocava uma blusa tão colada que, tacitamente, seus amigos podiam enxergar o seu estômago tremendo e até vestígios dos movimentos peristálticos. Apesar de possuir mais informação para achá-los, Debiega não os achou, e sim a “galera” mesmo que o viu primeiro:

- E olha o cara aí! Estamos aqui, Moses! Chega mais! – gritou Yosef, acenando com a mão como se ela fosse um ímã irresistível de atração humana.
Moses abaixou a cabeça e caminhou a passos vagarosos até o (seu) grupo de três pessoas: Além do banco vago, estavam lá Yosef, Win e um garoto de pele morena aparentemente mal-encarado, com um olhar perfurante em cima de Moses; Vestia jeans adornado de uma corrente dourada na lateral, camisa branca colada e cabelo raspado... Seria facilmente confundido com um dançarino de rua no subúrbio da cidade. Moses sentou-se e esperou os “ataques”:
- E aí, já viu a Sabrina cara? Já viu a Sabrina cara? Já viu a Sabrina, cara? – Win parecia um porquinho da Índia ávido por um pedaço de cenoura.

- Deixe-me chegar primeiro, rapaz... Eu tinha de ver vocês aqui antes de tudo, não é? – Os três olhavam para Moses como se ele fosse um dos ratos de laboratório nas aulas da faculdade, analisando-o, comparando sua carcaça com o porte de modelo de Sabrina... Para checar se ele era mesmo merecedor de tanto.

- De qualquer modo, podia ter dado uma olhadinha nos cantos da Praça, não é cara? – Yosef replicou, antecipando-se a um comentário que Win estava pronto a desferir.

- Tá, tá... Não vai me apresentar o seu amigo aí, Win? – Improvisou Moses para mudar de assunto por uns minutos.

- Ah sim, esse aqui é o Dylan. Nós nos conhecemos através do Nokeysa. – Win indicou o garoto “suburbano” com a cabeça, indicando que ele estendesse a mão para o “prometido” de Sabrina cumprimentá-lo.

Mexer nos serviços do Nokeysa tratava-se do passatempo mais utilizado pelas pessoas no mundo inteiro, quando dentro do mundo da Internet. Bastava um microcomputador conectado a rede e uma conta de e-mail para acessar um portal que agia como uma imensa comunidade humano-cibernética. Do ponto de vista social, o Nokeysa nasceu a fim de servir como uma ferramenta de fácil manuseio (pela sua estrutura simples usando links), capaz de apresentar candidatos a novos amigos de forma muito dinâmica, para o pessoal mais solitário, e reforçar os elos com os velhos companheiros e outras pessoas – desconhecidas aparentemente - com os mesmos gostos (ou desgostos) do usuário: Há grupos de discussão dentro das várias comunidades no “portal azul bebê”, fornecendo uma gama de conhecimento sobre músicas, livros, filmes, política e, principalmente, opiniões pessoais dos internautas a respeito de qualquer tema abordado. Muita gente já tinha iniciado um romance por ter conhecido alguém nos caminhos do Nokeysa (mesmo que o computador do amado/amada estivesse a quilômetros de distância). O aspecto físico/geográfico não influencia negativamente o portal... A Internet também é um meio comunicativo acima desses detalhes técnicos. Moses estava lá, Yosef também; e Win mostrou que estava um passo a frente dos dois em matéria de “novos contatos”:
- Quando eu falei que iria rolar a festa do Rozendo hoje, ele nem pensou duas vezes! Hahaha! Não é, Dylan?

- Tá ligado... Cara, eu já estava no pedaço (leia-se: Justine) por causa do meu serviço e resolvi ficar por aqui mesmo. Oras bolas, não é todo dia que tem uma festança dessas... Hehe – e forçou um sorrisinho amigável diante de Yosef e Moses. Porém, por mais que já tivesse notado que a presença chata do seu “novo amigo” Win - falando no seu cangote - fosse frustrante e irritante, ele sabia que suas chances de desenvolver uma conversa interessante com dois universitários sérios eram demasiadamente baixas.

- Ei, mano... Fala aí no que você trabalha para eles!... Aí, manda outro chopinho! – Win cutucou o ombro de Dylan e as costas da garçonete com a mesma força de elefante. O amigo do Nokeysa, que se via distraído pela beleza da atendente, não contava com outra saída a não ser falar:

- Eu sou Office-boy de uma empresa... Viro onze horas por dia indo de um lado para o outro, é legal porque conheço as regiões e os atalhos da cidade. E hoje, vim aqui nesses lados para pegar um documento que não foi legitimado... Então, tirei folga com autorização do chefe hehe.

Finalmente Moses começou a pensar em algo, naquela dimensão social que o convocou, diferente de Sabrina e dos sentimentos dela... Dylan era perspicaz e energúmeno ao mesmo tempo, aquela conclusão servia a uma construção paradoxal e para uma tese notável: A ignorância alheia não é explicada por ele ter um cargo subalterno num trabalho ou nem por achar afinidade alguma com o sujeito, alienado assim como Win, através da Internet. Veio na descrição de seus atos através do jeito de abrir a boca. Dylan não passa de um cara acomodado ao extremo; um homem que deve morar mal (“vim aqui nesses lados”) por morar bem longe de Justine (zona central), sofrer deveras devido ao excesso de tarefas (“onze horas por dia de um lado para o outro”) e ganhar um magro salário pelos serviços prestados (“... é legal porque conheço as regiões...”). Entretanto – na linguagem possivelmente favorita do “protagonista” Dylan – não largava o osso. O tipo de homem que não gostava de estudar, quando criança, levava críticas dos pais por causa da inadimplência escolar e pela preguiça – daí a necessidade de obter um emprego – e devia imaginar que a vida resumia-se em ganhar dinheiro para adquirir o celular/carro/relógio da moda e, não menos importante (mesmo), usá-lo de ímã para atrair as “fêmeas”. Por via das dúvidas, Moses oportunamente soltou uma pergunta clichê de quando se conhece alguém, no mínimo, intrigante:
- Dylan, em que bairro você mora?

- Eu? Moro perto de Medellia, no bairro de Tenbrennan... Conhece? – O garoto devolveu a pergunta até com certa dose de atenção, coisa que Moses “esqueceu”.

- Não, não. Só de nome, só de nome.

Explicado. Tenbrennan, além do nome intrincado, indicava uma das zonas de acesso mais difíceis de toda a metrópole de Meladori. Medellia estava muito mais perto de Justine do que aquele bairro. De tanto que o sentido de “subúrbio” exercia poder sobre essa localidade, ela situava-se nos limites de fronteira municipal! Moses acertou em cheio seus (pré) conceitos sobre o jovem Office-boy. Internamente, passou a fazer autocrítica... Desde quando adotava uma postura tão analista/desconfiada com pessoas desconhecidas? De gente sistemática para desestabilizar o planeta, apenas a Rub...
Antes de dar corda a qualquer raciocínio socio-psico-metafísico que pudesse congestionar sua mente, e permitir a saída de uma lágrima criminosa, Moses pediu licença a Yosef, Win e Dylan a fim de ir ao banheiro. Sabrina aparecer no campo de visão do pessoal seria questão de poucos minutos; e isso tornava a “fuga” uma atitude criminosa também, pois matava dois coelhos com uma cajadada só...
Por dez minutos, ele tomou uma dose de liberdade (com aroma de pinho) do meio social, depois retornou. Ficar mais que cinco minutos no toalete masculino sempre foi, sempre é e sempre será esquisito; Todavia, os três rapazes olhavam atentamente, pela janela inexistente do botequim, para um grupo de meninas que cochichavam avidamente. Moses entendeu que elas eram o alvo das seis córneas porque Win, como de praxe, estava apontando que nem um macaco de zoológico para um garotinho visitante com uma banana na mão. E mostrou-se mais tranquilo... Acomodou-se na cadeira sem que ninguém começasse a segunda bateria da “Temporada de Caça à Sabrina”.
- Que mina maravilhosa, meu Deus! – Por sorte, Win estava falando baixinho apenas para os outros dois gaviões, sinal de que não havia bebido tanto (ainda).

- Demais mesmo, cara... Nunca as vi pela área, acho que não moram por aqui... – Comentou Yosef, que adorava fazer uma corrida pelas ruas de Justine à noite e não perdia a oportunidade de fazer “novas amigas” pessoalmente.

Moses, escutando tudo que o grupo murmurava, sentiu-se tentado a levantar a coluna e procurar avistar as meninas tão badaladas. Quando realizou a façanha, pôde ouvir Yosef dizendo despreocupadamente:
- Aquela mais alta se produziu que nem a Sabrina para vir! Mas está dando de dez nela!

Até a entrada do bar ficou pequena para o tamanho nervosismo de Moses. Sabrina está presente em algum lugar da festiva Praça, e em nenhuma outra etapa anterior de sua vida ele ia visualizar a imagem daquele bar sujo e mal freqüentado como o abrigo mais eficiente do mundo – ou, no mínimo, a porção de mundo que cabia num raio de mil e quinhentos metros. Suas sinapses em cinco segundos elaboraram uns cinco planos destinados a impedir o iminente contato com o Furacão; todos caíram por terra. Moses usou uma prematura idéia, concebida em um centésimo de segundo num ponto consciente de seu cérebro, para manter os ânimos da (sua) audiência estáveis:
- Turma, eu acho que vi um freguês antigo lá da Youko, que faz tempo que não vai...

- Opa, você voltou?! De jeito nenhum! Vai atrás da Sabrina que ela já está no pedaço! Ah, claro, troca uma idéia com essa pessoa aí antes... E depois vai para o combate! – Win começou a ordenar antes mesmo de virar-se para ver Moses as suas costas. O giro de sua carcaça guiou a de Yosef, que só apoiou a declaração do pedante acenando positivamente a cabeça.

Não havia escapatória: Moses teria que se encontrar com Sabrina mesmo. Seu interesse particular beirava uns dez por cento, mas os espectadores já haviam pagado o ingresso do show com os copos de chope. A repercussão do espetáculo propagar-se-ia em Pindorama integralmente durante a próxima semana letiva... Seria o assunto mais importante para o andamento da Instituição desde o caso do Reitor com a filha do professor de Química Analítica, encerrado por uma bela briga entre os docentes no meio do campus, que se desgastou após três semanas de muita lenha numa fogueira borbulhante. Quando se vai comer o pão que o diabo amassa, é incrível ver quanta gente se oferece para assá-lo!
- Certo, certo! Não é preciso vir atrás de mim até avistar a Sabrina. Estou saindo... – Moses achou bem melhor cortar logo o pezinho de Win, que se moveu em direção a ele, a fim de empurrá-lo para fora do bar, antes que o ato fosse consumado. A paciência com o balofinho tinha um limite até para ele, e seu jeito de velho tratou de incomodá-lo nesta dedução.

Perante aquela sensação rara, do dever para cumprir sem estímulo o suficiente, o dono da Youkoloko mediu com os olhos a distância entre as duas esquinas adjacentes à Praça. Torcia para que encontrasse Sabrina e a contemplasse por algum longo minuto; Desse jeito, finalmente decidiria se a estudante merecia agüentar ele, e o seu bafo, numa noite tão bela, Moses Debiega sabia que o problema daquilo o que rolou, do que está rolando, e do que irá rolar não se referia meramente a “bola” de Moses Debiega ao sexo oposto... A bola que Sabrina dava para ele agregava um brilho largamente cobiçado – seguindo uma linha de pensamento machista.

- EI, MOSES! OLHA LÁ!

Verdade. Verdade dupla: Não existia sujeito tão inconveniente quanto Win num raio de quarenta mil quilômetros... E que Sabrina estava bem perto do Youko naquele crucial instante. Deslumbrante como nunca, o Furacão previu a ação locomotora do veterinário e cochichou algo ao pé do ouvido para as duas amigas que a escoltavam... Bastou o olhar direto após as risadinhas e os empurrõezinhos para Moses gelar; se ela vinha avançando até Moses, ele não poderia cogitar a hipótese de virar as costas ou de recuar um milímetro seus pés. Afinal, a platéia presente não iria perdoar! Sinapses, sinapses... Moses não tinha idéia de que a adrenalina exercia pressões negativas no organismo inteiro, as aulas de biologia não estavam abrangentes o suficiente... Sabrina lançou um olhar mais do que amistoso antes que ele pudesse se espantar com a rápida aproximação dela.
- Então, você veio mesmo, Mô? – Sabrina emendou essas palavras durante o intervalo dos dois beijos na bochecha de Moses.

“Mô”? Pela primeira vez na noite, Moses achou graça em alguma coisa. E é impossível rir de Sabrina: Maquiagem leve no rosto, rimando perfeitamente com um mini-short e uma blusa solta prateada (frente única?) deixando um par de ombros, perfeitos, livres para a curtição. A mais bela do evento, de longe. “Mô” imaginou que se o Padre Rozendo estivesse vivo, ia amarrar um crucifixo em volta do pescoço da bela e rezar trocentas ave-marias, dando duas voltas nas continhas do rosário, até Jesus tirar o pecado armazenado daquele corpo...
Privilegiado.
- Pu-puxa... Que bonita você está... Sa-sab...

Ih, ele emperrou a fala até na hora de dizer o nome:
- Huumm... Hahaha! Que amor... Ninguém nunca me chamou de “Sa”, hehe.

Sabrina está tão a fim do garoto que qualquer veneno que ele prepare, ela o tomaria como chocolate quente no Pólo Sul no ato. Para Moses, o cenário não batia com o trágico fim da novela que vinha estrelando – aliás, da minissérie – cujos protagonistas não nasceram para ficarem juntos. E, como consequência, não iriam morrer não se ficassem também. Moses nunca torceu tanto para que Sabrina criptografasse sua cara envergonhada e finalizasse toda aquela ceninha com um exaustivo bofetão no seu rosto ou o famoso “você é patético”. Diretamente, as probabilidades de Sabrina – e toda sua beleza reformulada – “virar a noite” ao lado do veterinário e nem pensar em conversar com mais nenhum garoto, dentre os presentes que a “secavam” ali na área, era mínima.
- Daqui a pouquinho, a Sinopse vai tocar ali no palco principal... Vamos ver o show juntos? – Improvisou o Furacão, reanimando a conversa.

- Hã? É a Sinopse que vai tocar ali?

Sinopse seria uma banda de rock - nas palavras dos próprios integrantes - recém-formada e recém-novata no primeiro lugar das rádios, que, pasmem, Moses apresentava um conhecimento vago sobre sua trajetória (justo ele; nunca ligado em música), já que, num passado muito recente, Aizaiah chegou à YL com um caderno do jornal Dial onde o quinteto de músicos figurava na página central. Nesse dia, Aizaiah ficou ligeiramente irritado em vista de toda a amostra de elogios desferidos, ao grupo “desses mauricinhos estúpidos”, ao longo do texto, para entreter os leitores assíduos do Dial – No caso da matéria em si, os viciados em música como Aizaiah.
- Sim, fala sério né, Mô? O novo som deles, acho que se chama “Altos Agitos”, é muito bom! Pela primeira vez a banda toca de graça, e nós vamos conferir eles tocando essa e as outras duas que estouraram! Ah não, vai ser demais... Estou indo pro palco e você vem comigo, vem!

- Mas, Sabrina... Tem que ser assim?...

- Hã?

- Opa... Desculpa. Digo...

Não tinha jeito de tirar a prensa hidráulica que estava esmagando o cérebro de Moses naquele instante; Se não bastasse não ter planos para dispensar Sabrina, a possibilidade de ver um grupo musical cujos membros se vestiam como filhotinhos mimados de poodles foi assustadoramente vislumbrada por ele... Pelo visto, Codi injetou-lhe uma solução ideal de repulsa a música ruim. A questão é... Convencer o furacão Sabrina a não ir para o gargarejo (centro da Praça), cujo espaço livre estava diminuindo gradativamente graças a um ônibus cheio de menininhas – e alguns garotinhos magrelos - que acabara de chegar ao “templo” do Padre Rozendo.
- É que... Essa banda Sinopse não faz uma trilha sonora propícia para acomodar o que eu queria te dizer.
E Moses sentiu uma cócega dolorosa no estômago; um golpe premonitório do que ocorreria, logo após a sua frase, foi concretizada através do rosto ruborizado de Sabrina:
- Me dizer?!... Dizer-me o quê?... Digo, o quê exatamente, Mô?... – a garota não conseguiu disfarçar sua empolgação - ou sua surpresa – com a declaração do rapaz apenas olhando para os lados de forma inquietante. Truque melhor seria uma boa risada sobre qualquer bobagem corriqueira numa Praça à noite, como olhar um velho discutindo, exaltado, uma trapaça no jogo de buraco ou um mendigo escondendo o último biscoito recheado, de um pacote furtado, do menino de rua malabarista.

- Vamos para lá. – apontou Moses para o nordeste.

Aquele ponto da bússola indicava a escadaria para o seminário (desativado) que o Padre Rozendo passara praticamente toda a sua juventude. Porém, antes do primeiro degrau, o contorno da calçada era bastante largo e gangorras decoravam toda sua extensão. Devido à pujança artística da Sinopse já figurar no universo infanto-juvenil, não tinha nenhuma criança brincando nas tábuas.
Um palco adaptável às reais intenções de Moses e Sabrina.

- Então, Mô... Qual... O problema? – Sabrina exibia nem um pingo de ansiedade...

O garoto a olhou como se acabasse de ter sido ordenado, por uma “força maligna”, para pendurar Sabrina num mastro bem grande utilizando uma corda banhada em álcool. E, não devendo ficar mais grave, o carrasco Moses iria ainda cantar o hino nacional ao término da “solenidade”.

- Meu Deus, eu quero demais saber como é o seu b... Ai! Nossa... O que você vai me dizer. - Ah, Sabrina... Se Moses fosse um tarado...

- Veja bem, Sabrina... É especial para eu estar com você esta noite, a-a-ainda mais eu já estando ciente do seu in...

"VOCÊ JUNTO A MIM, BABY! VOCÊ AGITA BABY! E JUNTOS ASSIM NOS DAREMOS..."

Esse som ecoou forte no aparelho auditivo, e em todo no sistema nervoso, do pseudo casal encostado num escorregador. O celular do Furacão era o artigo mais colorido que o garoto já vira antes: A começar pela capa de proteção, cujo bibelô tinha 10 centímetros e seria um chaveiro - para as pessoas mais práticas. Mas o aparelho também não ficava atrás... Adesivos colantes na parte externa e esmalte - com um tom azul de safira - decorando as teclas numéricas internamente; Sabrina vislumbrou o visorzinho do telefone (preenchido por "Mamãe!") e, deixando Moses perplexo de vez, iniciou a dar pulinhos tímidos e abanando os punhos! Movimentos que amenizaram a careta, daquelas de quem vai chorar, nascendo no formoso rosto da moça.

- Ai, ai... Não! Não! Mô... Dê-me só um minutinho, por favor? Essa merd... Essa ligação é importante, é rapidinho! É rapidinho! Eu juro.

- Hã... Claro que sim, Sabrina, claro. Atenda.


O Furacão riu e desatou a andar para longe de Moses; uma mão segurando o celular e a outra dando tapas no vento em polvorosa: Sabrina ficara irritada com a mãe, por interromper aquele instante tão aguardado, e o garoto, incrédulo, começou a comparar os trejeitos incomuns da menina - vistos nos últimos segundos - com os de Win. Felizmente, caiu em si outra vez e preferiu rodear os brinquedos, absorto.

Sem raciocinar por um "minutinho" foi interpretado como um favor que Sabrina fez a ele; assim, depois que Moses retornou a assimilar vozes femininas na festa, soube exatamente como recapitular a conversa com a nutricionista. Ergueu a cabeça para frente, esperando ver Sabrina a um palmo de distância, mas enganara-se... Surgiu outra menina perto do escorregador: Cabelos não muito longos, olhos pequenos, meio ferinos, e um corpo imaturo. Era esse o vulto principal no horizonte de Moses quando, por uma atração sorrateira, tal jovem andou decidida até ele; o garoto viu mais algumas meninas ao longe o encarando... Mas algo eliminou todo o "past continuous" de Debiega. Uma ação impensável:

- Por que sozinho gracinha? Brinca aqui comig...

E a garota atacou os lábios de Moses, descontrolada. O abraço dela o envolveu até a alma; e o beijo motivou o garoto a usar os braços também... Para agarrá-la pela cintura. Nada de repulsa, a língua dela apenas sondava, levando Moses a fluir no encontro de bocas. Só "bocas"? À medida que apertava, com a mão direita, o lábio inferior da moça, Moses sentia o nível de êxtase em seu sangue se elevar. Seu organismo devia estar iluminado, pelo fogo mais inocente, e o coração encontrava-se em velocidade máxima. O tempo que o beijo durou foi significante (6 minutos), entretanto, para Moses, podia durar a noite inteira: Cadê a frieza de espírito? Onde se enfiou a desilusão da vida? O dono da YL podia sentir-se lesado por perder duas características - antes nomeadas como "pontos fortes" por ele - naquela fração de hora; todavia, haveria ganhado uma "coisa" que fora arrancada dele. Voltando como uma chama:

O senso de juventude.

Enxergando novamente o mundo real, Debiega pôde escutar a menina cochichando a ele:
- Não foi ruim como eu previ... Puxa vida, que bom que eu errei! (tascando um selinho em Moses e, em seguida, saltitando de volta para a festa).


- E-e-ei! Volta! Volta, eu quero...

Sabrina estava em pé, estática. Estatelada verticalmente à um metro de Moses. Nem daria para esconder dela, caso estivessem namorando: Ver aquele beijo de Moses numa "anônima" foi receber uma descarga de um milhão de volts. Suas feições ficaram estranhamente destroçadas; talvez não tanto quanto o seu superego. Ela fixou o Youko com um olhar lacrimoso e vermelho, baixou o pescoço e rumou para a esquina mais próxima - suas amigas deviam espiar tudo de lá - do parquinho. Moses correspondeu a "encarada" da semi-quase-ficante, mas não tremeu com o olho do Furacão: Ele permanecia ‘adrenalinado’; aguçado em rastrear a garota que lhe devolveu a esperança de viver, nem que sua palpitação cardíaca durasse apenas mais aquela noite. Inclusive, as possibilidades de ir dormir, em questão de horas, já estavam dando cócegas; ele não iria ser derrotado pelo sono. O sonho ali, na Praça, tornou-se um acontecimento fenomenal.

- Meu irmãozinho! Como que é foi? Como rolou?! A Sabrina já está ali com as gurias, então aí... - Win brotou da terra, cambaleante; sedento por absorver a glória das vitórias alheias. Ele estava pendurado de modo tão dependente, no ombro de Dylan, que até indicaria que o evento encontrava-se "fraco", relativo ao número de mulheres ("princesas") em circulação.

- Se quer tanto saber, pergunte direto à ela. Vá para o inferno e não encha mais meu saco. - Respondeu educadamente Moses.

Embora Win e Dylan tivessem acabado de adotar uma cara de tacho bem hilária, o novo jovem dirigiu a palavra a Yosef com vivacidade:

- Yosef, viu uma garota com olhos de gato e cabelos de cerejeira? Hein? Hein? Ela tinha um tamanho mais ou menos assim, e...

A mudança de Moses era nítida. Yosef deixaria o queixo cair se não fosse dizer:
- Não, cara. Não vi. Eu só sei que a Sabrina está por ali...

- Pouco me importa! Onde está a moça que me beijou?! - Moses alteou o tom da voz para Yosef e ensaiou uma fuga estratégica da roda de amigos. Porém foi impedido por Dylan.

-Você está bem, cara?

- Larga rapaz! Deixa de ser besta... Vocês não têm ideia do que rolou aqui...

- Moses, não me lembro de ter te visto assim... Vamos voltar ao bar para comermos alguma coisa, quem sabe você se restabelece... Podemos descer pela Rua da Praça e ir num restaurante...

- RESTAURANTE?

Um estalo no cerebelo de Moses conseguiu desviar sua concentração para outro tema: O jantar na casa dos Codi. Não tinha ideia de que horas seriam, contudo pressentiu que chegara a hora de dar o fora do evento. Inesquecível evento.

- Cara... Eu preciso sair, tenho que ir à casa do Aizaiah! FUI!

- Moses!... O QUE QUE TÁ PEGANDO?!

Win berrou em vão: Debiega deu um pique impressionante, furando a plateia do (fraco) show da Sinopse e todas as panelinhas de papo da festa em direção ao fim da rua, dobrando a esquerda na ladeira, sorriu descaradamente. O lar dos Codi aproximar-se-ia mais a cada passo veloz que ele desse. Moses parou, pôs as palmas das mãos no asfalto, como um velocista olímpico, levantou as pernas fazendo ângulo, respirou e disparou! Jamais recordaria que fora um bom corredor na escola primária se não fosse aquela garota e aquele beijo... Iria encontrá-la em outra “rodada”, nem que precisasse mover o Morro Blank ou cavar toda a areia de Porcelina. Num milésimo de segundo, Ruby invadiu a sua mente e o fez parar de maneira mortalmente súbita. Porém, oportuna.

Havia parado, exatamente, na porta de Aizaiah; reuniu forças e tocou a campainha.

[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO ZERO






CAPÍTULO ZERO

NEVE DE SORVETE



Eis um trecho da última conversa de Moses, ao telefone, com um amigo do colégio:

- O que é isso, Moses! A festa do Padre Rozendo rola uma vez a cada quatro anos! A quantidade de pessoas que vão para lá é imensa! Vai ter muita mulher, garoto! É para matar a fome, a sede e tudo que nos incomoda em um dia só!

- Esquece cara... Eu preciso estudar para a prova. Além disso, ainda vou conferir se não esqueci nenhum exercício da professora Cassandra. Admito que não suporto a matéria dela...

- Não muda de assunto, irmão! Até eu sei que ninguém lá da sala gosta de nanobiologia, mas nem por isso a faculdade impede que você vá se divertir! Deixe de encarar a vida tão a sério, vamos zoar... Aproveitar a vida!... Opa...

- Isso foi uma indireta, não foi?

- Ih, Desc... Foi um... Não queria dizer algo assim... Calma.

- Não vou ofender você, Yosef. Pelo seu tom de voz percebo que você não disse por querer. E quer saber? Mesmo a frase tendo intenção, não poderia falar nada, certo?

- Moses, Moses... Qualquer coisa vá para lá amanhã, eu tenho que ir dormir logo porque a conta do telefone aqui em casa é... Bem, eu e a turma vamos ficar no bar a direita da Praça Rozendo. E depois, vamos para a praça mesmo... Para a guerra. Tudo bem? Boa noite cara!

Moses, Moses... Provavelmente o universitário mais cabisbaixo da face da Terra. Não por ter (muitos) problemas com dinheiro – com uma loja Pet Shop (ou, segundo seus planos futuros, um centro de tratamento animal) herdada do seu pai - ele é o único empreendedor de vinte anos que conhecia – e muito menos problemas envolvendo mulheres, pois era o menino mais “mirado” pelas garotas do curso de veterinária. Infelizmente, nem ele consegue explicar o que falta em sua vida a fim de não viver sentindo-se tão melancólico. Devido às respostas negativas quando o convidavam para sair e badalar no fim de semana, seus colegas na universidade costumavam dizer sempre, em tom de brincadeira, que Moses tinha “jeito de velho” – Mas é claro que os jovens já não estão mais com idade para brincar com essas palavras... Moses tem um jeito diferente sim, movimenta-se do mesmo jeito que o seu falecido pai, e se possuía seus colegas atuais era porque nem ele, nem eles, nunca se consideraram amigos desde o começo. O rapaz abria um leque de argumentos, para falar desde economia nacional até sobre amizade, e não conseguia explicar-se bem nem com a ajuda do vento. Além de jeito de velho, Moses ainda conta com a dificuldade de se expressar... Como se a complexidade para abrir um ratinho cobaia e checar quantas artérias estavam ruins (atividade comum em suas aulas) fosse nada perto da complexidade de revelar a alguém seus pensamentos e opiniões sobre a vida – ou, no caso desse jovem, a falta dela.
- É mesmo, o Aizaiah já foi embora... Acho que nós dois esquecemos a comida do Quack, vou voltar lá embaixo. – falou sozinho Moses, referindo-se, respectivamente, ao seu único empregado e a sua calopsita de estimação.

Aizaiah Codi não é só o único funcionário do Pet Shop Youkoloko como também acumula a função de melhor amigo de Moses. Bom, Codi tem três anos a menos que o seu chefe e, sendo assim, aprimorava a sua capacidade de escutar, compreender e opinar sobre os conflitos e dúvidas inerentes ao fim da adolescência, que ainda perturbam o ‘senhor’ Moses.
Youkoloko - ou YL para os “bons entendedores” - nas palavras do pai de Moses, Derek Debiega, é “o legado do presente para as conquistas do futuro!” – Moses lembrou-se vagamente da frase enquanto descia às escadas em direção ao térreo, pois quando se virava para a esquerda para tocar o corrimão, via uma fotografia antiga dele com seu pai, sua mãe, sua irmã e a mascote Eden – a calopsita mãe de Quack. Dentre os seres da memória, a ave, mesmo sem sorrir, ironicamente passava mais alegria que o restante do clã Debiega. Pelo que Moses sabia, a sua irmã – Sheila - só tinha ligação sanguínea com ele por parte de mãe. O casal Derek e Ava não possuía a melhor relação conjugal do mundo após a concepção dos rebentos. Contudo, Moses apenas gostava de recordar a ótima relação que tinha com Sheila; até Ava pedir o divórcio e levar a garota para outra região do país... Isso já havia alguns anos, uma década talvez?... Moses não parou para calcular o tempo que passou, teve medo de que também lembrasse, como um bônus, de algum conflito típico fraternal; intenso o suficiente a fim de deixar alguma seqüela, negativa, nos sentimentos de Sheila em relação a ele... E voltou a focar em que ração dar a Quack e aos passarinhos “comerciáveis”.

- Pai, como o senhor pediu a mamãe em namoro?

- Eu não pedi, moleque! Esse foi uma parte do propósito!

- Propósito? Como assim?

- Só vou dizer uma coisa a você, filho... Eu não conheço todo o mundo, e todo o mundo me assustava. Não por medo do desconhecido, de criminosos ou da morte, nada disso... Mas pela impotência de não conseguir superá-lo. Só isso que você deve saber, por enquanto.

- Mas por que tanto mistério, pai?

- Se eu falar como conquistei Ava, você talvez não tenha o mesmo êxito quando decidir completar a sua vida... Esse macete do amor você irá descobrir sozinho, Mos...

- EI!

Quase toda semana, o seu cérebro recorria àquela lembrança, encaixando-a aos sonhos de Moses; mais uma vez, QUASE ele avançava mais naquele diálogo que tivera com o seu velho, em uma última tarde de inverno, na Praça Rozendo. Sabia apenas que era uma última tarde de algum inverno; não recordava com exatidão o ano, mas que foi num tempo próximo do rompimento de sua família, foi... “Todo mundo? Será que esse termo tem duplo sentido? Mesmo se não tiver, será que o pai quis fazer charada? Macete? Ele não era tão misterioso depois que a mãe partiu, por que será?” – Moses fazia a si mesmo essas perguntas toda vez que o sonho o visitava. Sonhos realistas são como parentes distantes no natal: Na chegada, ambas as partes se estranham e estão sujeitas a esquecerem uma da outra após a entrega do presente, mas quando há histórias para contar, resolvem aparecer no ano novo, na páscoa... Mas o tempo encontra-se num vazio mês de junho!
- Moses! Moses! Já cheguei, valeu?

Aquela voz alta só podia ser de Aizaiah. Por mais que o adolescente não fosse trabalhar cedo, por causa do colégio, ele tem em seu poder as chaves do cadeado, caso acontecesse qualquer fato incomum (se Moses não estivesse presente no estabelecimento, a casa do jovem empregado ficava perto dali; e esporadicamente, as aulas extracurriculares da faculdade eram necessárias para Moses). Moses tranqüilizou-se aos poucos ainda na cama, devido ao sonho; após uns segundos, levantou e aprontou-se para ir à Universidade. Antes de sair, deu algumas instruções a Aizaiah, fazendo o máximo de esforço para não perguntar por que o menino bateu seu ponto no cantar do galo, às sete horas da manhã - se ele “pegava” às duas da tarde.
- Pode deixar comigo, Moses. Eu sei onde estão as vacinas e a ração especial, sim.

- Legal, então... Daqui a pouco estou aí, até mais.

Seguindo a rotina, é Moses mesmo o responsável por abrir a loja em algum minuto entre onze horas e meio-dia, raramente o expediente começava de outra maneira. “Talvez Aizaiah não foi à escola por causa do conselho de classe... É, é isso sim”. Uma política que Moses adota desde que conhecera o jovem – fato datado de tempos atrás, pois Derek e o pai de Codi construíram uma grande amizade – Foi batizada pelo próprio de “muralha da China”: A vida dele anda e a do seu subalterno também; quando ele visse problemas que sente ânsia de cuspir, bastaria abrir a boca em direção ao “muro” (Aizaiah), para aliviar suas queixas. Independente se Codi importa-se ou não com a vida de Moses, sempre ele diz uma letrinha sobre o que acha ou deixa de achar. Mas em compensação, atrás daquele muro não aparentava ter nenhum problema – pelo menos não para o patrão. Nunca Moses julgou que Aizaiah marcou presença no serviço de cara amarrada, triste ou com vontade de falar algo desagradável. Em miúdos: Se, superficialmente, está indo tudo bem com a “China”, que continue as nossas relações padronizadas, seguindo a divisão internacional do trabalho. Porque até acontecer uma revolução...
- E aí, Moses! Veio na hora certa! – Incrível a facilidade que Win possuía de abrir a boca e fazer com que metade do campus virasse a atenção para o seu discurso. O - auto-intitulado - melhor amigo de Moses inoportunamente aproximou-se do rapaz piscando e executando movimentos um tanto dissimulados. Parece ensaiar constantemente um novo vexame.

- Fala, Win... Preciso perguntar por que está girando a cabeça e fazendo caretas?

- Irmão (falou Win, colocando o braço no ombro esquerdo de Moses)... Tenho uma bomba para contar para você... O Furacão Sabrina vai à festa da Praça!

- Ué, o que isso tem a ver comigo? – Nem é preciso dizer que Moses quer terminar a conversa o quanto antes e entrar na sala.

- O quê? Irmãozinho, a Sabrina sempre esteve a fim de você! Não esqueça que ela é a Miss da faculdade! Amanhã pode ser o melhor dia da sua vida! – Com toda a alegria que Win disse aquelas palavras, deixou transparecer que pode matar um urso para trocar de corpo com Moses.

O jovem administrador veterinário olhava para o céu com uma postura pensativa: Indubitamente Sabrina era muito bonita mesmo. Cabelos cacheados impecáveis, olhos da cor do mel (Moses definiu melhor em sua cabeça: “Cor do favo da colméia!”), corpo de modelo numa estatura ideal, o nariz “certinho”... O que raios será que ela viu nele para “estar a fim”? Ele tinha um rosto gordo, corpo desprovido de porte atlético (porém não era magro), olhos castanho-escuros e cabelos “lambidos” com uma franja dupla esquisita... Moses alega que os fios de cabelo teimam em ficar cobrindo sua testa nas laterais, e não adiantava cortá-los. Bem, as meninas de qualquer jeito gostavam. E o mais interessante – concluiu Debiega mentalmente – é o fato que Sabrina não estava no curso de veterinária... Ela almeja tornar-se uma nutricionista. Depois que voltou a si, Moses olhou Win em toda a sua extensão. Sim, o sujeito falastrão é meio roliço, com mãos e pernas curtas; suas roupas coladas no corpo não o ajudavam virtualmente em nada; A bela paisagem arborizada do campus de ciências biomédicas da Universidade Pindorama permite que os estudantes ampliem o campo de visão e Win acaba sendo um aluno bem notável, no sentido literal do termo. Moses tratou de andar mais rápido em direção a sua turma, usando a desculpa de precisar falar com Yosef na biblioteca. Assim deixando tal melhor amigo para trás.
Ao decorrer das aulas, os olhares corriqueiros e as conversas paralelas ao discurso explicativo dos professores não mudaram o seu curso em nenhum momento. Yosef encontrou Moses no momento em que ele adentrou na sala. O colega sentou-se ao seu lado e tratou de ratificar o que Win comunicara antes: Sabrina estava mesmo a fim. E mais, o assunto já tinha se libertado do círculo de boatos e residia na boca e nos ouvidos de, pelo menos, metade das garotas da Universidade Pindorama inteira! Depois dos beijinhos de despedida nas garotas da turma (10 mulheres para seis homens no sexto período do curso de veterinária) e de cumprimentar Yosef e Win, Moses caminha para casa munido de idéias sobre como estragar o previsível “encontro” entre ele e o Furacão Sabrina. Ao contrário da ala masculina que estudava no Pindorama, ele nunca havia enxergado a aspirante à nutricionista com olhos de coelho, muito menos trocado três frases diretamente com ela (os dois já foram apresentados em algum bate-papo num passado recente, mas Moses só correspondeu com um “beleza” uma piada da gata sobre suas roupas). E o mais chato é o fato que Sabrina com certeza não iria gostar, para dizer o mínimo, de uma rejeição do sexo oposto em um evento amplamente divulgado e popular, como é o caso da iminente festa tradicional do Padre Rozendo, na Praça que levava o nome célebre: Jubileu Rozendo foi um religioso famoso por ter sido grande ativista social no desenvolvimento da cidade.
Já que faltava ainda um pouquinho mais de 24 horas para a festa, Moses optou por desligar-se do tema enquanto se dedicava ao trabalho. Quinta-feira é dia da habitual visita da senhora Mill com a sua cadelinha poodle Donna às 14 horas, visando fazer um check-up do animal e criando as oportunidades para o jovem exercitar, cada vez mais, suas habilidades de medicina veterinária: Ele não deixa de gostar bastante e se possuí algum sonho em sua vida, ele traduz-se na transformação do Estabelecimento Youkoloko no Centro de Tratamento Animal Mellonyouko depois da sua graduação. O termo “mellon” seria uma homenagem à...
Bom, uma vez que Moses não faz nada de especial durante o exame em Donna, está na hora de explicar os acidentes do passado que fizeram Moses tornar-se a espécie de “acidente social” para os seus colegas no presente... Amigo leitor, não envolve dinheiro! Mas envolve uma mulher.

Ruby Locke foi a pessoa mais importante relacionada à adolescência de Moses. Essa moça e ele conheceram-se aos 11 anos de idade, num memorável primeiro ano do ginásio no colégio Rebanho. Porém, logicamente, custou um pouco de tempo para iniciarem um relacionamento firme – Não havia muita desarmonia entre eles, em geral, as “crianças grandes” da turma sempre foram unidas – ou para terminarem de vez com a infância: Ambos aos 13 anos decidiram namorar, concluindo a soma dos fatores ‘vontade interna’ e ‘pressão externa’, e durante três anos tudo o que eles passaram fora fantástico... Até em que certo sábado à noite, dormindo com Moses no quarto dele, Ruby ouviu as seguintes palavras soltas por seu namorado perdido no abismo do sono: “Sheila... Sheila... Só você consegue brincar disso... E tome cuidado com o so...”
Mesmo ele não completando a frase, o proferido foi o bastante para Locke ficar em estado de choque momentâneo. Ouvira o nome ‘Sheila’ sem dúvidas, foi o adormecido Moses mesmo que esclareceu totalmente ela, repetindo o substantivo duas vezes! Só ela brincava daquilo... Ruby custou a acreditar que o quarto onde estava deitada havia sido palco de uma “diversão paralela” para Moses e outra menina, o custo fora mensurado através das lágrimas que rolaram em seu rosto. Antes que começasse a soluçar, ela resolveu sair do quarto silenciosamente e rumar para o banheiro. Misturando de uma forma surpreendente – até para ela – decepção com compaixão: Para Ruby e seus pais, o simples fato de não passar algumas noites dentro de casa era equivalente a trair os intocáveis valores familiares, imaculados desde a raiz da árvore genealógica. Todavia ser uma pessoa recatada demais na sociedade – mais especificamente a da região em que morava – não deixava de ser uma atitude ridícula. Ela levara isso ao relacionamento com Moses por muito tempo, e sabia que a turma de colegas do casal riam dela pelas costas. Por que puxou tanto ao seu pai? Sistemático e sempre hesitante, submetendo-se a doutrinas invisíveis e permitindo que a sua vida o levasse e o rebaixasse em tudo que fazia. Num estalo perante o espelho do lavabo, a filha do Sr. Locke descobrira que sua pele, exageradamente branca, era portadora daquele mal – uma doença hereditária. Bem, ela não freqüentava praias devido ao perigo de expor a falta de melanina; nunca ia às boates, graças ao imaginário violento e vulgar dos antros sociais noturnos, imposto por sua formação conservadora... Gostava apenas de um bom cinema. E gostava muito. Ruby montara uma teoria que tratava que o primeiro cinema do mundo devia ter sido construído por um casal de namorados. Se o primeiro filme da história rodado numa tela gigante era de romance ela não sabia, porém – independente do roteiro - tinha absoluta certeza que não existia lugar melhor, para dois apaixonados, do que o universo escuro das salas de exibição cinematográficas.
Ruby não queria acreditar que Moses estivesse “enjoado” dela e dos cinemas. Sheila seria diferente da monotonia, pois brincava... Ela não conhecia nenhuma Sheila e, mesmo se conhecesse, seu estado de covardia atual não permitiria que lembrasse... O fato que ela passou a encarar, a partir daquele dia, seria a necessidade de uma mudança em si mesma, sentia a permanência de sua adoração por Moses ainda depois dos murmúrios do rapaz sobre “a outra”, ou seja, o que Moses sentia por ela mantinha-se capaz de equilibrar todos os seus sentimentos pelo amado. Isso ficara comprovado no convite, vindo num buquê de violetas, que o garoto deu a ela na manhã passada. Fora uma elegante intimação para ela ir dormir acompanhada por ele na YL. Debiega continuava claramente interessado em namorá-la. Sim, a noite que tivera tinha o valor de um pedido de perdão! A receita do amor vinha ganhando cada vez mais nitidez para Ruby agora. Mas... Amor?
Repensando sozinha a sua relação com Moses enquanto vestia-se (não iria conseguir mais pegar no sono), a moça viu o Sol de domingo levantando-se e resolveu sair para espairecer. As estradas chegam ao ponto de secção na vida humana mais cedo ou mais tarde e a garota julgou que uma mudança de hábitos a faria muito bem. Ela lembrou - com vergonha – que nunca disse ‘eu te amo’ à Moses de maneira espontânea ou mesmo aleatória em três anos de namoro. Obviamente não seria bom falar uma frase tão impactante como esta nos primeiros meses de relação, mas dizer somente após em trocas de presentes esporádicas (Natal, páscoa e dia dos namorados) ao longo de quase quarenta meses não ficava bom também. Em sua cabeça, já estava decidido: Iria adotar uma nova personalidade visando agradar Moses e, se fosse possível, o mundo que a rodeava. Ruby lembrou-se que trancara a porta da YL por fora quando saiu e resolveu regressar. Surpresa, ela achou Moses acordado logo que empurrou a “portinha” (a porta da casa era parte do acesso ao estabelecimento), o rapaz a olhou de maneira aliviada... Mas virou um inquisidor repentinamente:
- Aonde é que você foi? – pela imagem do rosto, Moses nem tinha ido escovar os dentes.

- Fui ver se a padaria já tinha sido aberta. Queria comprar os pães de queijo que você tanto gosta, amor... Para agradecer a noite fantástica de ontem. – Ruby deu uma aula de como ser sistemática no momento propício; Comemorou a dissimulação perfeita com um aperto e um beijo nas mãos do namorado sonolento.

- Amor... Puxa, hoje é domingo! Aguarde um pouco que às sete horas abre uma perto do parque. – Moses não agia de forma perspicaz, mas sentiu que temia sobre tal desculpa ser irreal.

- Ah, sim... Então irei lá depois! Vá se lavar, amor! Que tal irmos à praia depois de tomarmos café? – Sugeriu Ruby de primeira.

Sem perceber, ela acordou definitivamente a inativa desconfiança de Moses. Nem ao menos preparou uma defensiva para os questionamentos que vieram a seguir:
- Ei garota, o que você fez com a minha namorada?... Praia? Ruby... Nem da areia você gosta! O que está acontecendo? – Moses adotou uma face de preocupação, mas seu tom de voz não estava alto. Favorecendo a formulação da segunda rodada para respostas precisas de Ruby.

- O Sol acabou de sair, não irá fazer mal nenhum a mim um mergulho na Porcelina, amor. Dando essa volta no quarteirão, recordei-me que só fomos uma vez lá, com a turma, e ficamos menos de uma hora... Nem precisa dizer que culpa foi minha, não banalize a verdade. Quero compensar aquela falta a você agora. Aproveitar nossa inspiração enquanto ela não cessa... – caprichando na entonação e nos carinhos, ela esperou a abertura da boca de Moses para ouvir as conseqüências de suas letras:

- Sim, vou ao banheiro, e então, comemos um pão e vamos ficar lá... Um pouco. Hoje eu tenho que arrumar as prateleiras aqui da loja. Mas o nosso tempo junto tem que render, Ruby.

Ruby ficou feliz externamente. Internamente, ela estava eufórica. O tempo deles dois juntos tinha que render! Ela viu muito significado naquelas palavras de Moses e, se dependesse dela, o tempo jamais seria inimigo... De preferência, nem amigo. Toda sua euforia retraída não a impediu de continuar agindo racionalmente:

- Esqueci que eu não tenho protetor solar... Temos de passar no mercado antes de ir à Porcelina. – Ruby gritou a fim de que Moses pudesse ouví-la, o berro vindo do banheiro em seguida deu a entender que o jovem captara a mensagem.

Porcelina atendia melhor pelo termo “o litoral universal”. Ao longo de sua extensão, havia de tudo que as melhores praias do planeta possuíam em termos naturais: As ondas do mar mantinham uma regularidade incrível em matéria de altura; permitindo que os surfistas a adorassem, os coqueiros eram abundantes e probabilidade de se achar tatuis, tartarugas e peixes superava de longe as expectativas em relação aos caranguejos ou águas-vivas. Mesmo inclusa num eixo muito urbanizado, aquela praia exercia um poder e um fascínio muito grande aos olhos das pessoas. A sujeira cumulativa que todo o tal progresso acelerado trouxe à cidade não a prejudicava. Era o único patrimônio mundial que Ruby e Moses podiam alcançar a pé e ver “pessoalmente”.
Após tomar café, o casal saiu e procurou uma farmácia ou uma loja de conveniência aberta às seis e meia da manhã. E só encontraram o bronzeador num mercadinho numa das ruas de ligação a Porcelina – Ruby, sem conhecer profundamente a fragilidade de sua derme, comprou um de “fator 90” para garantir um bom escudo contra o ataque ultravioleta. A insolação significava o único perigo real que a Praia poderia oferecer – sim, nem a criminalidade ousava chegar perto da área de Porcelina. O folclore nacional dava àquele lugar histórias formidáveis e acabava aumentando sua aura misteriosa. Alheio ao ambiente no momento, Moses tratou de curtir o descanso com Ruby durante três horas. Quando notou que a densidade demográfica começara a crescer, na mesma medida dos raios solares, ele chamou sua amada e despediu-se do mar. O saudável clima externo harmonizou o romance entre os dois, apesar de uma parte cerebral de Moses trabalhar negativamente, pois o fato do comportamento de Ruby inverter-se de um dia para o outro não passaria despercebido nem pela pessoa mais insensível do mundo. Será que ela fez alguma coisa capaz de Moses ficar decepcionado, ou será que foi ele próprio que deixou de fazer algo importante para agradá-la, e Ruby, racionalmente, tenta torturá-lo às avessas para ele lembrar e sentir-se o pior ser que existe? Moses odiava particularmente o dom humano de “esquecer”; então, pela incerteza, ele resolveu botar os panos na mesa logo enquanto andavam até a Youkoloko:
- Ruby... Você está convencida realmente de que queria ir à Praia? Está sinceramente realizada agora que foi à Porcelina?

- Claro que sim. Meu amor, hoje eu acordei respirando os mesmos ares e absorvendo novas idéias. Não conheço homem melhor que você, portanto, quero fazer com que a nossa história dure anos e anos. E seria difícil manter esse objetivo na prática sendo a mesma Ruby todo o tempo.

Moses respondeu de forma muito eloqüente (“huuumm...”). Morria de vontade de soltar uma resposta à altura daquela notícia, mas não conseguiu durante um minuto. Ele nunca criticou Ruby por seu jeito de ser, adorava sua inteligência elegante, seu andar mais contido – em relação à maioria das meninas – e como falava pouco, mas muito bem. Cogitou rapidamente se devia construir novas idéias também, para os dois “pombinhos” evoluírem juntos, abortando a idéia no momento em que conseguiu achar a pergunta certa:
- Seu estilo natural é o que mais me fascina... Você me promete que irá me surpreender sem mudar a sua... Essência?

Todo o período verbal de Moses não perdeu impacto nenhum com o barulho do forte vento marítimo: Ele conseguiu trocar a expressão do rosto, preenchido por leves sardas, um pequenino nariz e grandes olhos verdes de Ruby elogiando à sua personalidade; e de quebra, seu questionamento veio fundado numa promessa. Todos os cálculos que a moça armara para conversar com Moses, naquele dia de domingo, caíram por terra. Ruby parou de andar e começara a chorar:
- Vo-Você nunca disse... Meu estilo é fa-fascinante... Obrigada, amor... Muito obrigada!... – Ela atirou-se em Moses, permitindo que ele quase caísse de costas na calçada – Não, eu não mudarei minha essência, eu prometo (beijos sem pontaria na cara do namorado), eu prometo!

Nada como palavras combinadas de uso poético para comover o sexo feminino! Moses, mesmo tendo um Q.I. considerável, notou que veio um lampejo intelectual a ele ao falar “fascina” ou “essência”, que não eram palavras corriqueiras para ele. Mas no espaço de tempo em que pensara nisso (enquanto se recompunha do abraço impulsivo de Ruby), quis acreditar que os sintagmas surgiram graças à interação de longa data com uma menina inteligente – até acima da média, segundo os boletins escolares. Até porque ele achou que o motivo responsável por sua consciência vangloriar-se, com a investida afetuosa de Ruby, era justamente porque conseguira desestabilizar – por um momento inesquecível - aquela mente tão interessante.
- Então que assim seja. Amor... – Moses podia sentir-se vitorioso, mas claro que ficara emocionado quase tanto quanto Ruby – Nossos laços nunca irão se quebrar. Acabamos de dar uns bons nós nele.

- Não mude também a sua essência querido. Mesmo essas suas analogias não tendo sentido, eu as adoro! – E Ruby desatou a rir junto com o amado, de braços dados, dirigindo-se o para o que seria um domingo atarefado dentro de uma loja cheia de peixinhos dourados, pássaros e chinchilas. Um final peculiar para um conto de fadas tradicional, mas ideal para encerrar um princípio de pesadelo horrível que horas atrás a perturbara – um pesadelo batizado de ‘Sheila’.

Duas semanas depois, foi a vez de Moses passar a noite na casa de Ruby, apesar da grande distância entre os lares dos dois: O bairro Justine, onde localizava-se a Youkoloko, era geograficamente muito afastado de Medellia – região suburbana da cidade – conhecida como “bairro cinza” pelos forasteiros, já que havia sido um bairro de concentração industrial importante para a cidade em décadas passadas e que, naqueles tempos, só possuía o céu poluído e as casas quebradas dos ex-funcionários de tais fábricas inativas. “Maldito seja o progresso tecnológico!” e “Malditas são as barganhas capitalistas!” eram as frases favoritas dos pobres vovôs que ali viviam; gastando o seu tempo contando sua história de vida aos netinhos. Sorte a de Ruby – e de Moses também – que sua casa não ficava próxima ao Morro Blank, local que abrigava o crescimento de uma favela: O tipo de comunidade identificada, já naquela época, ameaçadora igual a um cisto de câncer... Para a sociedade. A diferença é que a culpa de tal perigo se desenvolver não era dos “pacientes”, e sim de quem fazia (ou poderia fazer) o papel de médico.
Antes de Ruby cair de verdade no sono, o lado esquerdo da sua cama já estava roncando. Quando ela virou seu corpo para acariciar e adormecer abraçada ao seu namorado, o pesadelo retornou, invadindo seus maduros ouvidos:
“Sheila... Quero brincar disso de novo... É minha vez! vamos, Sheila... Isso é tão legal...” – Moses falara num murmúrio tão inteligível que até os pais de Ruby, se estivessem em casa, estariam sujeitos a escutá-lo uma vez perto da porta do quarto da filha – O casal tinha ido a um evento para funcionários da empresa onde o pai de Ruby trabalhava. Só voltavam no dia seguinte.

A verdade de Moses só aparecia nos sonhos? Não era possível... Ruby não se lembrava de uma vez ter ficado mais decepcionada do que naquele momento. Como assim “é tão legal...”?! Como assim “brincar disso de novo...”?! A vontade que a adolescente sentiu de acordar Moses com um soco no peito para condená-lo, repetindo as entorpecidas palavras dele, nasceu tão forte que ela achou impressionante o fato do namorado continuar dormindo calmamente... Preso em seu mundo de sonhos (brincadeiras?) enquanto uma fúria flamejante emanava de Ruby e talvez esquentasse o colchão em uns 50 graus centígrados. Antes das lágrimas mancharem o seu rosto albino, ela retirou-se do leito e foi à cozinha. Ela queria comer, mastigar alguma coisa... Queria cravar seus dentes em algo palatável a fim de não cogitar morder o pescoço de Moses e acabar diretamente com seu pesadelo particular; tentar acabar com a tal Sheila indiretamente... Quem diabos ela era? Pensou em telefonar a um dos amigos – os mais próximos do rapaz - justamente para perguntar o número de Sheila porque tinha que comentar um assunto com ela (bastava deixar claro ao amigo que Moses já havia apresentado uma à outra e que elas tinham um selecionado interesse em comum, e Ruby iria falar para Sheila algo muito interessante a respeito de tal gosto partilhado). Porém já passava de uma hora da manhã e até Ruby lembrar-se de uma preferência sua para usar – sorvete de flocos, violetas, mariposas... Qualquer uma – tornar-se-ia uma noite cansativa àquela mente incessantemente calculista. Ela fez o máximo para relaxar e parar com o imaginário de uma menina bonita junto a seu amado pulando no quarto, e... Brincando. “Se Moses ainda sente algo especial por mim... Como ele pode ser tão hipócrita?! E logo comigo!” – Ruby gritava mentalmente, ficou em desespero sentada no sofá da sala. Fora traída pela pessoa que mais gostava e dependeu do inconsciente dela para saber de tal verdade. Moses e suas devidas confissões provavelmente não viriam até Ruby por livre e espontânea vontade nunca; assim, “de que adianta mudar? Não agrado mais o meu a... Esse moleque! De que adiantaria manter a minha essência se ele deseja outra? Imbecil!” – síntese do turbilhão de raciocínios da jovem naquele instante. Apesar do incontável número de lágrimas que já tinha derramado em questão de segundos, ela arranjou forças para esfregar o braço nelas e concluir algo daquilo tudo, inspirado numa outra decisão de passado recente: “Não agrado mais a Moses... Mas posso agradar ao resto do mundo.”
Opa! Moses terminou o tratamento da cadela Donna. Ele pode considerar-se um homem semi-quase-bem-sucedido nos negócios, porque se tivesse um funcionário diferente de Aizaiah, a YL já poderia ter fechado as portas: O assistente sabe de cor todos os apetrechos médicos precisos para examinar cachorros de qualquer porte, e ainda teve a maior paciência de segurar uma poodlezinha irrequieta durante dez minutos - sendo que Moses não o paga para os serviços de aspecto veterinário. Codi não cansou de mostrar seu espírito prestativo, até ofereceu-se para dar adestramento gratuito à cachorrinha da senhora Mill quando terminasse o curso de aprendizado.
- É sério, querido Aizaiah? Você ensinaria minha Donninha a ficar mais calminha? Eu não faço idéia da melhor forma de agradecer! – A Senhora Mill guarda um amor tão cego pela cadelinha que atribuiu intensidade a uma característica inexistente em Donna... A quadrúpede não era calma, não mesmo.

- Bem, ainda devemos esperar o fim das minhas aulas de adestrador... Mas tenha certeza, madame Mill, que quando eu tirar o diploma do curso, a senhora será a primeira a saber.

Moses continuou a observar e admirar a facilidade com que Aizaiah lida, sem ficar incomodado, com os caprichos da senhora e seu bichinho todo aquele tempo. O trabalho constantemente os deixava exaustos, contudo com um auxiliar tão bom quanto Codi, era viável manter o ritmo sem reclamações. Quem mais sabia que o herdeiro Debiega sempre ficava mais cabisbaixo em determinada época do ano? Que, aliás, era a época em que eles estavam vivendo: Um ameno e recém-renascido junho.
- Ei, Moses... Está me ouvindo? Eu falei para você sobre o jantar que minha família irá fazer? – perguntou Aizaiah no momento que Moses despediu-se da fiel cliente, já fora do estabelecimento, com acenos e sorrisos amarelos.

- Jantar o quê? Não rapaz... Não disse nada, acredite... Um jantar com sua família? – Moses não iria esquecer nenhuma palavra relevante que saísse da boca de Aizaiah jamais, até porque o menino nunca falava algo referente à sua família ou sua casa; Quando Moses não desabafava, só ouvia a voz do interlocutor por algum tópico sobre o costumeiro serviço.

- Sabe... Minha avó está visitando a cidade, ela veio do Norte e retornará para lá dentro de dois dias. Ela gostaria que fizéssemos um jantar familiar tradicional, mas desejou também que pudéssemos convidar os... Semelhantes mais chegados. Vale lembrar que você e meu pai não se vêem há um tempo, não é? – Por mais que essa questão tivesse um caráter mais íntimo, Aizaiah falou mantendo seus olhos focados nas prateleiras de alpiste e de brinquedos de uso felino.
- Bem, isso já não é comigo... Ele sabe onde me encontrar caso quisesse matar a saudade, hehe... – O jeito que Moses desferiu esse comentário seria o suficiente para terminar a conversa. As piadas já não eram o seu forte e quis rir junto com alguém, mais novo, que levava as coisas mais a sério do que ele – quando na mesma idade. Codi se saiu bem; fingiu que não ouviu:

- Olha, o jantar será na minha casa mesmo, amanhã, às dez da noite. Você é a única pessoa quem eu convidei. Com licença... – Aizaiah dirigiu-se até a porta à esquerda da abertura que dá acesso às escadas da residência de Moses, possivelmente a fim de pegar algo que esqueceu na mesa de exames dos animais (a “Sala de Atendimento Médico”).

O administrador da YL não demorou a compreender o que Codi deixara no ar: Dizendo que Moses era a única pessoa a ser convidada, o garoto disse-lhe a palavra mágica - ”por favor” - da maneira sutil mais persuasiva que se pode imaginar. Debiega balançou a cabeça bem lentamente e subiu os degraus até o seu quarto. Agora ele teria que escolher qual seria a prioridade de sua atípica sexta à noite: Ou ir, por pressão “amigável”, ao evento anual na praça ou jantar com a avó alheia. Ele custou a acreditar que Aizaiah, do zero, veio convidá-lo para uma reunião – a princípio – de família e amigos próximos. Por isso ficou um tanto sensibilizado; no mínimo mais sensível do que o costume... Não é nem porque o mês de junho representa o tempo gregoriano nesse momento; Moses sentia – melhor, temia – que sua vida atual estivesse gravemente incompleta, numa mistura de desorientação com arrependimento coberto com uma camada de fumaça, bem densa, que proibia que identificasse o(s) problema(s) nitidamente, em sua mente atolada em trabalho e estudos. O universitário iria morrer sem entender como as ditas matérias biomédicas tornavam-se mais complicadas a cada prova; ao compasso que toda a arte curativa, ou dos cuidados aos outros seres vivos, o seu falecido pai dominava com denodo invejável e sem documento algum que provasse toda a sua habilidade! Outra vez usando as palavras hieroglíficas de Derek Debiega “o que seu coração aprende não esquece, e o que sua mente esquece, destrói”.
Visto que parou defronte ao retrato da família mais uma vez, Moses afirmou, consigo mesmo, que em certo ponto de sua jornada teria que parar um pouco para decifrar as letras mais aéreas de seu pai. Mesmo ciente que, quando tal quebra-cabeça fosse desfeito, não permaneceria tão atento ao cheiro nem ao sabor dos ensinamentos dele provenientes. A foto à esquerda da lembrança é uma interrogação; Moses odeia olhá-la, mas a última coisa do mundo que ele faria era tirá-la daquela posição. Entretanto chocou, por um maldito impulso involuntário do pescoço, suas córneas na maior (e mais vistosa) imagem do corredor: Era a praia de Porcelina cobrindo o horizonte iluminado pelo Sol e por um rosto feminino jovial e sorridente, realçando uma paisagem perfeita de cartão postal caso a garotinha não tivesse uma pele tão clara (na contramão do padrão de beleza predominante no país). A felicidade contida no semblante da moça armada com um palito de picolé na mão esquerda - e com uma direita feita para merchandising, pois a postura de modelo apresentando a paisagem litorânea ficara brilhante – não inspirava nenhum sorriso recíproco na face de Moses havia muito tempo. Não era culpa da praia, nem das montanhas ao fundo, do picolé e nem da garota. A moldura negra que prendia aquele “pôster” na parede era o que denunciava o motivo da lágrima solitária do rapaz na contemplação-relâmpago do retrato; tudo era culpa dos dizeres impressos numa pequenina forma oval em relevo situada abaixo da tela. Dizeres? Não... Melhor definindo, datas marcantes:



RUBY CYGNUS LOCKE


29/03/1989

20/06/2006