segunda-feira, 20 de agosto de 2012

7º TAKE: SERENO - "The Tale of Dusty and Pistol Pete"


O conto abaixo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais - Biblioteca Nacional (RJ):

   

VII - SERENO


Quão empolgante uma vida pode ser aos 56 anos?
Essa era a pergunta com variável – idade - que o ‘capitão’ Pete tentava responder a si mesmo, situado em diversos âmbitos, desde que seu filho casou-se e o 1º neto nasceu. Como tudo passou depressa depois de 1979... Ele estava, naquele momento, em uma praça pública repetindo a mesma questão mentalmente, enquanto dava milho aos pombos. Por um segundo, veio-lhe outro tópico pertinente à mente: Por que nunca tinha parado para refletir ali, tão perto de casa? Os olhares sujos daqueles pombos famintos e imediatistas não ajudariam a responder.
Pombos... Ao contrário do que grande parte da sociedade achava, animais mais significativos não havia na História de Meladori; e Pete seria a melhor testemunha do fato que assegurava tal certeza: 31 anos atrás, quando sua terra, Meladori, ‘cansara’ de ser uma província dependente e oprimida pelo tirano governante de Porcelina, o uso dos pássaros fora primordial ao exército meladoriano para a guerra de libertação e independência. O acontecimento estava impresso nos livros de História como ‘Revolução Meladoriana’. Embora seja óbvio que aqueles pombos “de praça” (escuros) estivessem longe de serem do mesmo tipo dos pombos que mereciam devidas glórias ou admiração. Não que o capitão fosse racista, mas...
É, ele constatou que aquela praça quase nunca recebera sua visita antes por causa daquilo que estava ocorrendo. O local guardava lembranças ruins... Foi mesmo ali que ele, como soldado especializado no setor de “Informação e Espionagem” pelas tropas no ano da ‘Revolução’, fora espairecer (ou seja, chorar) pelo teor da carta mais decisiva de sua vida: a sua correspondente-pretendente Dahlia lhe escreveu a fim de terminar o relacionamento de longa distância que mantinham.

Pretendente?    
É muito pouco. Dahlia foi o grande amor... E, também, sua irmã ‘postiça’; na guerra, seu falecido pai (major do exército e melhor atirador de toda a armada) tinha sido deslocado para proteger a região de Meladori situada a 100 km ao norte – o extremo mais agitado e ‘separatista’ para as Forças Armadas porcelinas. Lá, sabe-se que ele encontrara uma menina de 16 anos e seu irmãozinho chorando a morte da mãe, atingida por um projétil, num casebre quase sem teto. O velho capitão sentiu pena dos jovens, acolheu-os no quartel... O restante dessa história ‘melosa’ não entra em livros de História.
Pete resolveu voltar para casa quando acabou o milho. Era hora de esquecer aquele passado frustrante. Ora, entrara na Reserva já havia cinco anos; aposentou-se como oficial (soldo elevado), vários de seus contemporâneos militares viviam viajando... É, viajar seria um bom começo. Ao chegar em casa:   
- Vô! Vô! Tem um pombo-correio lá em cima com uma carta para o senhor! – o neto veio lhe comunicar tão surpreso quanto ele ficou. Quantas pessoas além dele mesmo sabiam como...?


- Hah-hah! Não brinque com isso, meu pequeno Pete. Acredito, com quase total certeza, que ninguém, além de seu pai e eu, sabe como treinar pombos-correio em Meladori... Já estou careca de lhe contar as histórias da guerra que eu participei antes de seu pai nascer hah-hah! Vá brincar de out...


- Não, vô, é sério! Um pombo branco pousou em cima da pistola de ‘plata’ do bisavô, a que está na parede! Ele tem algo na perna; liguei para o papai e ele disse que depois vê, mas não pode sair do ‘tlabalho’! – disse nervoso Pete III, de seis anos.


Certo; o rosto de preocupado do neto, e o fato de tal peculiar mensageiro ter parado justamente em cima do maior tesouro (em valor afetivo) que a família possuía, mudara a perspectiva de Pete quanto à notícia. Quem mais, ainda vivo, poderia ser capaz de adestrar pombos para se comunicar? Já que ninguém estava de guerra ou reconhecia onde... Ah!... Sim!
O Capitão deu um pique impressionante em direção ao 2º andar; como não concluira antes?! Quando esteve na praça há 31 anos, tinha lido uma mensagem trazida por um pombo também. Por mais que Meladori já estivesse se declarado independente, os Correios meladorianos ainda se estruturavam. Então, tratava-se simplesmente da mesma pessoa... Pete ofereceu algo ao pombo e colheu a carta – era, sim, de Dahlia:

 Olá, caro Pistol; imagino que esteja estupefato nesse instante... Mas, acredite, para eu ter de me dirigir a você de novo, é algo necessário.    
Por favor, leia: Eu estou sofrendo de uma enfermidade ridiculamente grave. Uma doença no sistema nervoso que o nada eficiente sistema de saúde público daqui consegue curar, apenas retardar... Sei como Porcelina representa o ‘Mal’ em nossa História (e também o porquê); mas, felizmente, ainda consigo lembrar que, se ainda fizéssemos parte de lá, muito provavelmente já estaria livre desse mal. Creio necessitar do melhor neurologista possível antes que a Esclerose Múltipla – um dos ‘brindes’ dessa maldição que adquiri – elimine toda a minha lucidez aos 48 anos.
 Você ainda tem contato com o Dr. Flood? Talvez ele seja o único apto a me ajudar agora, após eu já ter sacrificado as minhas finanças à atenção de todos os médicos ‘privados’ de Meladori, só posso agora enxergar nele uma fração de esperança... Ele está vivo, certo?Eu preciso de ti para chegar até ele, Pistol, não demore a me responder... Sei que estou sendo inoportuna e admito que, outrora, não devíamos ter mexido nos sentimentos um do outro, porém minha saúde está em risco. Elaborando como escrever essa epístola, percebi que não importa o quanto queiramos romper um laço, seus pedaços ainda poderão render nós por muito tempo.
         Espero que você esteja bem (ao menos, melhor do que eu),
                                                                                                     Dusty
 
Pete terminou a leitura trêmulo. O que pensar sobre aquilo...? Estava com esclerose? Mas lembrara dele. Lembrara até de usar os codinomes que usavam nas correspondências antigas. Dusty... Pombo... Então ela continuava vivendo na região árida ao norte, cenário da batalha onde o pai morrera combatendo... Ele ligou os pontos: Dahlia aprendeu com o major a arte da seleção e criação de pombos-correio. E a usou para, brilhantemente, encontrá-lo após lhe dar um fora passível de esquecimento a curto prazo... Nesse aspecto ela se enganara: 
- O vovô já vai soltar o pombinho? – perguntou o neto.

- Na... Não... Bem... Sim. Mas não agora, Pete. Antes tenho de procurar um velho amigo daqueles tempos, velho mesmo... Vou agir. Vai brincar, pequeno. Deixe o pombinho quieto, ele não irá sair daí. – respondeu o capitão, preocupado.


Dahlia teve a proeza de, com a carta, deixar o capitão tenso – apenas por ter ‘voltado’ repentinamente – e também lembrá-lo do Dr. Flood. Esse homem talvez fosse o melhor dos médicos de Meladori; fora o oficial designado para orientar os cuidados aos soldados feridos em 79 e, também, fora a última pessoa a ver o pai de Pete, em seu leito de morte, alvejado fatalmente no cérebro... Nada mais compreensível que ‘Dusty’ desejar ser examinada por ele. O Sistema de Saúde meladoriano andava mal das pernas há um tempo, sem investimentos... Os profissionais mais novos nem ganhavam o que os anos de estudo – e esforço - mereciam. Desestímulo gradativo do governo?... De qualquer maneira, Pete ligara para conhecidos do quartel-general (e ao próprio quartel), pedindo informações atuais sobre Flood. Sem sucesso, mas com garantias de “iremos averiguar onde o capitão vive”.
Após os telefonemas, ‘Pistol’ refletiu: Quero tanto assim ajudá-la? E se, na pior das hipóteses, sua consciência não se abalasse tanto por Dusty sofrer? Era insensível, mas ela parecia ser assim também (...) Ele escreveu para despachar o pombo:


O Dr. Flood não morreu. Gostaria de falar com você pessoalmente. Daqui a dois dias, no Museu Histórico de Meladori às 17h. O que acha?Se puder ir, não precisa mandar um pombo. Espero que você esteja lá. Saúde.
  

Quarenta e oito horas se passaram e nenhuma ave descera na casa ‘Pistol’ durante esse período. Dahlia e Pete iriam se encontrar cara-a-cara – pela primeira vez. No carro a caminho do Museu, ele admitira a ansiedade ao filho (o motorista), mas não daria o braço a torcer. Três décadas se foram e o capitão-adestrador sempre se pegava pensando nela: Encantava-lhe o modo que Dusty usava as palavras quando se correspondiam na época; como ela o ajudou com a dor ao perder o pai, como ela fora mais forte do que ele - por perder duas pessoas queridas e manter-se, na medida do possível, bem. Finalmente a veria e saberia a causa real de ela ter rompido a relação. Ao chegarem:  
- ... Estive prestes a mandar o pombo de volta; mas, infelizmente, ele está velho e precisa descansar após a viagem. Foi a última missão que o incumbi... Então, estou aqui, Pistol.




(CONTINUA... No livro '1979: A Terra dos Milhares de Culpas', de Iury M. Soares)