O conto abaixo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais
- Biblioteca Nacional (RJ):
VII
- SERENO
Quão empolgante uma vida pode
ser aos 56 anos?
Essa era a pergunta com
variável – idade - que o ‘capitão’ Pete tentava responder a si mesmo, situado
em diversos âmbitos, desde que seu filho casou-se e o 1º neto nasceu. Como tudo
passou depressa depois de 1979... Ele estava, naquele momento, em uma praça
pública repetindo a mesma questão mentalmente, enquanto dava milho aos pombos.
Por um segundo, veio-lhe outro tópico pertinente à mente: Por que nunca tinha
parado para refletir ali, tão perto de casa? Os olhares sujos daqueles pombos
famintos e imediatistas não ajudariam a responder.
Pombos... Ao contrário do que
grande parte da sociedade achava, animais mais significativos não havia na
História de Meladori; e Pete seria a melhor testemunha do fato que assegurava
tal certeza: 31 anos atrás, quando sua terra, Meladori, ‘cansara’ de ser uma província
dependente e oprimida pelo tirano governante de Porcelina, o uso dos pássaros
fora primordial ao exército meladoriano para a guerra de libertação e
independência. O acontecimento estava impresso nos livros de História como
‘Revolução Meladoriana’. Embora seja óbvio que aqueles pombos “de praça”
(escuros) estivessem longe de serem do mesmo tipo dos pombos que mereciam
devidas glórias ou admiração. Não que o capitão fosse racista, mas...
É, ele constatou que aquela
praça quase nunca recebera sua visita antes por causa daquilo que estava
ocorrendo. O local guardava lembranças ruins... Foi mesmo ali que ele, como
soldado especializado no setor de “Informação e Espionagem” pelas tropas no ano
da ‘Revolução’, fora espairecer (ou seja, chorar) pelo teor da carta mais
decisiva de sua vida: a sua correspondente-pretendente Dahlia lhe escreveu a
fim de terminar o relacionamento de longa distância que mantinham.
Pretendente?
É muito pouco. Dahlia foi o
grande amor... E, também, sua irmã ‘postiça’; na guerra, seu falecido
pai (major do exército e melhor atirador de toda a armada) tinha sido deslocado
para proteger a região de Meladori situada a 100 km ao norte – o extremo mais
agitado e ‘separatista’ para as Forças Armadas porcelinas. Lá, sabe-se que ele
encontrara uma menina de 16 anos e seu irmãozinho chorando a morte da mãe,
atingida por um projétil, num casebre quase sem teto. O velho capitão sentiu
pena dos jovens, acolheu-os no quartel... O restante dessa história ‘melosa’
não entra em livros de História.
Pete resolveu voltar para
casa quando acabou o milho. Era hora de esquecer aquele passado frustrante.
Ora, entrara na Reserva já havia cinco anos; aposentou-se como oficial (soldo
elevado), vários de seus contemporâneos militares viviam viajando... É, viajar
seria um bom começo. Ao chegar em casa:
- Vô! Vô! Tem um
pombo-correio lá em cima com uma carta para o senhor! – o neto veio lhe
comunicar tão surpreso quanto ele ficou. Quantas pessoas além dele mesmo sabiam
como...?
- Hah-hah! Não brinque com
isso, meu pequeno Pete. Acredito, com quase total certeza, que ninguém, além de
seu pai e eu, sabe como treinar pombos-correio em Meladori... Já estou careca
de lhe contar as histórias da guerra que eu participei antes de seu pai nascer
hah-hah! Vá brincar de out...
- Não, vô, é sério! Um pombo
branco pousou em cima da pistola de ‘plata’ do bisavô, a que está na parede!
Ele tem algo na perna; liguei para o papai e ele disse que depois vê, mas não
pode sair do ‘tlabalho’! – disse nervoso Pete III, de seis anos.
Certo; o rosto de preocupado
do neto, e o fato de tal peculiar mensageiro ter parado justamente em cima do
maior tesouro (em valor afetivo) que a família possuía, mudara a perspectiva de
Pete quanto à notícia. Quem mais, ainda vivo, poderia ser capaz de adestrar
pombos para se comunicar? Já que ninguém estava de guerra ou reconhecia onde...
Ah!... Sim!
O Capitão deu um pique
impressionante em direção ao 2º andar; como não concluira antes?! Quando esteve
na praça há 31 anos, tinha lido uma mensagem trazida por um pombo também. Por
mais que Meladori já estivesse se declarado independente, os Correios
meladorianos ainda se estruturavam. Então, tratava-se simplesmente da mesma
pessoa... Pete ofereceu algo ao pombo e colheu a carta – era, sim, de Dahlia:
Olá, caro
Pistol; imagino que esteja estupefato nesse instante... Mas, acredite, para eu
ter de me dirigir a você de novo, é algo necessário.
Por favor,
leia: Eu estou sofrendo de uma enfermidade ridiculamente grave. Uma doença no
sistema nervoso que o nada eficiente sistema de saúde público daqui consegue
curar, apenas retardar... Sei como Porcelina representa o ‘Mal’ em nossa
História (e também o porquê); mas, felizmente, ainda consigo lembrar que, se
ainda fizéssemos parte de lá, muito provavelmente já estaria livre desse mal.
Creio necessitar do melhor neurologista possível antes que a Esclerose Múltipla
– um dos ‘brindes’ dessa maldição que adquiri – elimine toda a minha lucidez
aos 48 anos.
Você
ainda tem contato com o Dr. Flood? Talvez ele seja o único apto a me ajudar
agora, após eu já ter sacrificado as minhas finanças à atenção de todos os
médicos ‘privados’ de Meladori, só posso agora enxergar nele uma fração de
esperança... Ele está vivo, certo?Eu preciso de ti para chegar até ele, Pistol,
não demore a me responder... Sei que estou sendo inoportuna e admito que,
outrora, não devíamos ter mexido nos sentimentos um do outro, porém minha saúde
está em risco. Elaborando como escrever essa epístola, percebi que não importa
o quanto queiramos romper um laço, seus pedaços ainda poderão render nós por
muito tempo.
Espero que você esteja bem (ao menos, melhor do
que eu),
Dusty
Pete terminou a leitura
trêmulo. O que pensar sobre aquilo...? Estava com esclerose? Mas lembrara dele.
Lembrara até de usar os codinomes que usavam nas correspondências antigas.
Dusty... Pombo... Então ela continuava vivendo na região árida ao norte,
cenário da batalha onde o pai morrera combatendo... Ele ligou os pontos: Dahlia
aprendeu com o major a arte da seleção e criação de pombos-correio. E a usou
para, brilhantemente, encontrá-lo após lhe dar um fora passível de esquecimento
a curto prazo... Nesse aspecto ela se enganara:
- O vovô já vai soltar o pombinho?
– perguntou o neto.
- Na... Não... Bem... Sim.
Mas não agora, Pete. Antes tenho de procurar um velho amigo daqueles tempos,
velho mesmo... Vou agir. Vai brincar, pequeno. Deixe o pombinho quieto, ele não
irá sair daí. – respondeu o capitão, preocupado.
Dahlia teve a proeza de, com
a carta, deixar o capitão tenso – apenas por ter ‘voltado’ repentinamente – e
também lembrá-lo do Dr. Flood. Esse homem talvez fosse o melhor dos médicos de
Meladori; fora o oficial designado para orientar os cuidados aos soldados
feridos em 79 e, também, fora a última pessoa a ver o pai de Pete, em seu leito
de morte, alvejado fatalmente no cérebro... Nada mais compreensível que ‘Dusty’
desejar ser examinada por ele. O Sistema de Saúde meladoriano andava mal das
pernas há um tempo, sem investimentos... Os profissionais mais novos nem
ganhavam o que os anos de estudo – e esforço - mereciam. Desestímulo gradativo
do governo?... De qualquer maneira, Pete ligara para conhecidos do
quartel-general (e ao próprio quartel), pedindo informações atuais sobre Flood.
Sem sucesso, mas com garantias de “iremos averiguar onde o capitão vive”.
Após os telefonemas, ‘Pistol’
refletiu: Quero tanto assim ajudá-la? E se, na pior das hipóteses, sua
consciência não se abalasse tanto por Dusty sofrer? Era insensível, mas ela
parecia ser assim também (...) Ele escreveu para despachar o pombo:
O Dr. Flood
não morreu. Gostaria de falar com você pessoalmente. Daqui a dois dias, no
Museu Histórico de Meladori às 17h. O que acha?Se puder ir, não precisa mandar
um pombo. Espero que você esteja lá. Saúde.
Quarenta e oito horas se
passaram e nenhuma ave descera na casa ‘Pistol’ durante esse período. Dahlia e
Pete iriam se encontrar cara-a-cara – pela primeira vez. No carro a caminho do
Museu, ele admitira a ansiedade ao filho (o motorista), mas não daria o braço a
torcer. Três décadas se foram e o capitão-adestrador sempre se pegava pensando
nela: Encantava-lhe o modo que Dusty usava as palavras quando se correspondiam
na época; como ela o ajudou com a dor ao perder o pai, como ela fora mais forte
do que ele - por perder duas pessoas queridas e manter-se, na medida do
possível, bem. Finalmente a veria e saberia a causa real de ela ter rompido a
relação. Ao chegarem:
- ... Estive prestes a mandar o pombo de volta; mas, infelizmente,
ele está velho e precisa descansar após a viagem. Foi a última missão que o
incumbi... Então, estou aqui, Pistol.
(CONTINUA... No livro '1979: A Terra dos Milhares de Culpas', de Iury M. Soares)
(CONTINUA... No livro '1979: A Terra dos Milhares de Culpas', de Iury M. Soares)