sábado, 1 de agosto de 2015

CALIBRE [Conto de 6000 caracteres]

CALIBRE


Só restava à Meshell, uma das novas calouras de Engenharia da ECU, respirar fundo novamente. Mais uma vez contendo seu ímpeto emocional, ao relembrar seu êxito em ter entrado no melhor curso de Engenharia? Não. Já se achava instalada num apartamento, distante de sua cidade(zinha) natal e perto da Universidade em que construiria seu sonho. A razão para emitir uma carga maior de gás carbônico foi sua amiga - e parceira acadêmica - demonstrar sua antipatia com o que lia na internet:
- É impossível que você não se indigne agora. Olha: UM BILHÃO EM EQUIPAMENTO BÉLICO! O governo é louco!

- Shara, o Estado sempre reservou parte dos orçamentos anuais para essas coisas e... Sei que é absurdo querer investir em armas com tantas demandas; mas lembre-se que a culpa é das pes...

Pessoas odeiam. A não transitividade do verbo fazia sentido tanto para Shara quanto para Meshell. Contudo, a internauta em questão tinha como maior ‘hobby’ caseiro, desde que se mudou com a amiga, manifestar sua aversão às armas de fogo. Para a caloura, nada era mais desprezível que revólveres, canhões etc. Ela culpava às armas os altos indíces de violência nas cidades grandes; mesmo que Meshell a alertasse que 60% dos crimes culminantes em lesões ou homicídios eram protagonizados por armas brancas ou ‘mãos limpas’ (todas as aspas do mundo são insuficientes). Pessoas odeiam. Na mente de Shara, o desdobramento de todo sentimento negativo acabava em violência covarde e tiros. Os pais dela ligavam semanalmente e sempre ouviam da filha “tá tudo bem mesmo aí, certo? Tomem cuidado!” antes do “tchau”.
Só fazia três semanas da mudança, mas Meshell já sabia que a amizade entre elas seria eterna; pois não ‘desistia’ de abrir os olhos da companheira sobre o exagero e tentava, geralmente, induzi-la a cair em contradição (“você diz que as armas de fogo alimentam o ódio e a covardia das pessoas, mas se você as abomina por isso, alimenta ódio dentro de si mesma”).
- Tá, tá, de qualquer forma, vamos nos aprontar para a Aula Magna inaugural do curso; esqueceu que é hoje à noite? Temos de ir à faculdade. – interrompeu Shara, olhando desconfiada para a porta do apartamento. Pelo barulho, um dos vizinhos estava chorando de novo.

- Vou [grito]... Tomar banho. Os dois estão juntos em casa a essa hora? Que raro. A gente só ouve a criança chorar o tempo todo...

Em três semanas de burocracia e arrumação, Shara e Meshell não conheciam bem a família que morava ao lado. Aparentemente, formada por um casal e um filho único pequeno. Porém, com as férias escolares, o filho ficava trancado em casa e os pais saindo constantemente, devido ao trabalho (?); os sons de discussões e lamúrias já tinham sido internalizados pelas jovens vizinhas.
Uma hora depois, a discussão alheia cessou e as calouras se encontravam prontas para ir à ECU. A Aula Magna que viriam a assistir era uma convenção para todos os ingressantes em Engenharia. O 1º período era restrito a disciplinas tidas como ‘básicas’ aos engenheiros e só no 2º semestre os estudantes escolhiam a vertente do curso em que profissionalizariam. Tradicionalmente, o docente ‘palestrante’ era um(a) engenheiro(a) conceituado em sua área e convidado da Universidade. Após chegarem e entrarem no auditório, um banner indicou quem seria o ministrante do encontro: “Malvo Balzari - Doutor em Engenharia Balística e chefe de perícia criminal da INTERPOL”.
- Não acredito que me desloquei para ver um cara falando de armas!

- Vê se sossega. Ele deve ser um engenheiro incrível, já que tem cargo de chefia na polícia internacional – replicou Meshell.

O reitor da ECU entrou no auditório, sentou e anunciou o Dr. Malvo; um senhor de meia-idade com um semblante pacífico. Ele logo pediu a vez e o microfone:
- Gostaria de pedir desculpas a vocês pelo atraso. Tive de confirmar a patente de uma invenção minha, que detecta a presença de armas de fogo num raio de 1km e...

- AFE! Não quero assistir uma aula sobre armas de fogo!

O rompante de Shara veio com uma voz que ecoou pelo espaço. O olhar de Malvo ficou curiosamente espantado à moça; desde que ela percebeu que virara o centro das atenções no auditório até sair do recinto, com Meshell em seus calcanhares. Ela não se sentia envergonhada (ainda era uma desconhecida); tinha convicção do seu ódio por armas. Depois de uma hora ouvindo a bronca de Meshell no pátio, Shara foi ao banheiro e encontrou o Dr. Malvo no bebedouro – intervalo:
- Bom te rever. Sua personalidade é admirável. Qual o seu nome?

- Shara. Nada do que pode me ensinar mudará minha opinião sobre a desgraça que são as ar...

- Moça, não quero discutir. Apenas gostaria de te emprestar isso [o Dr. colocou a mão para trás e sacou uma...]

- OPA!
   
 A reação de Shara quando Malvo apontou a pistola para ela foi mais interrogativa do que assustada:
- Ha! Um sentimento puro, sem medo! Essa é uma pistola de festim. Os cartuchos são ocos para treinos. Quero que passe um dia com isso e tente ajudar alguém usando-a. Se preocupa com as pessoas e assim não gosta de armas, certo? Admiro você.
Malvo pediu o endereço dela e voltou ao auditório. Meshell viu Shara confusa e foram para casa (”ele brincou, Shara?” “Ah, que venha pegar esse troço amanhã”).
No dia seguinte, depois da aula, o doutor apareceu na porta:
- Boa noite. Ajudou alguém?

- A quem eu teria ajudado com uma arma?

Malvo deu espaço e deixou Shara olhar a porta dos vizinhos pelo corredor. O pai saíra e a mãe consolava a criança chorosa, que apontava:
- BO-LÁ! BO-LÁ!

- Shara, dê-me a pistola.

Malvo pediu licença à vizinha, entrou na casa e viu pela janela uma bola de plástico presa num telhado inferior; o perito atirou e o estampido nas telhas fizeram a bola cair na garagem do prédio.
- Também não aprovo a existência de armas, mas até venenos podem ser utilizados como remédio. Lembre-se: a culpa é das pessoas, não das invenções. Tudo depende de como manipulamos o que temos e, claro, de como ouvimos o próximo.
   
 Pela gratidão mútua, as calouras ganharam amigos e Malvo o gosto por dar aula.