terça-feira, 9 de novembro de 2010

PRESENÇA

11/01/2010 - Querido Papai Noel,
Eu ainda continuo triste por não ter ganhado uma bicicleta no Natal. Meu pai disse que a culpa foi minha porque não escrevi uma carta para você. Mas eu sei que foi porque, na verdade, não fui um menino bondoso o ano inteiro. Muito bem, hoje estou escrevendo ao senhor e declarando que mudarei meu comportamento ‘rebelde’ a partir do instante em que selarei esta carta. Prometo também que tentarei comunicar ao senhor a cada mês o que acontece por aqui (para o senhor ter certeza que é verdade, minhas cartas serão lidas e assinadas pela minha mãe). Está certo? Espero que o senhor esteja bem... Já sonho lá na frente – em dezembro – andando na minha bike. Gostaria de poder escrever meu nome, mas há chances de essa carta ser extraviada e até divulgada à imprensa. E já que eles não divulgam o nome de menores em más condições de vida... Não me interessa saber como é a vergonha que eles sentem. Sei que o senhor sabe quem eu sou. Ora, o senhor é capaz de voar com renas! Ao menos, espero ter não errado nada de ortografia para não deixar má impressão. Abraços, ‘Xis’.



12/02/2010 - Querido Papai Noel,
Eu quase fraquejei na minha promessa: Após terminar a 1ª carta, meu pai chegou bêbado em casa – o time dele havia vencido o 1º jogo do campeonato – e muito sujo. Minha mãe e ele iniciaram uma discussão enorme e que terminou empatada... Enquanto eles brigavam, o ‘velho’ pegou o envelope e limpou a boca com ele! Era o único! Depois disso, só lembro que eu dei um soco tão forte na barriga dele que expulsei toda a tristeza acumulada que tinha... Pelo meu pai nunca ter me levado para passear, sempre preferir o bar em vez de seus empregos (quem sabe ele ajudaria o senhor, sendo o ‘doador’ da minha bicicleta?) e – claro - por ter me ensinado que só se resolve problemas com pessoas assim: dando pancada. Só agora vejo que isso é errado (minha mão ainda dói). Já a mãe aprovou o que fiz (pus o velho para dormir naquele dia e curar a ressaca) e falou que eu não precisava confessar meu erro ao senhor. Mas se meu pai não ensinou nada sobre sinceridade, então ser franco aqui é a melhor atitude que posso tomar. Ah, as férias acabaram e estou estudando! Abraços, ‘Xis’.



13/03/2010 – Prezado Papai Noel,
O senhor acha que as minhas mensagens estão exageradas? Outra vez, a mãe me aconselhou a parar de chamar o senhor de ‘querido’ e evitar falar ‘eu’... Segundo ela, o senhor irá achar que eu sou ‘carente’ demais e não fica legal – mesmo morando na favela mais miserável da cidade. Mas não entendo: Até acho que as minhas cartas são curtas (pois entendo que você deve ler infinitas correspondências de outras crianças... Precisa economizar tempo). Falei com o meu tio sobre isso, mas ele só riu e me apoiou a fazer o que EU posso para ganhar a bike... E claro, confiar nas boas intenções do senhor (“a sua mãe assiste noticiário sensacionalista demais”). É esse irmão da minha mãe que estará assinando este mês. Certo? Continuo sendo um bom garoto em casa e na escola. Aliás, estou apaixonado pela garota mais bonita da sala e pretendo me declarar. Meus amigos riram quando falei... Tem alguma regra do senhor que me deixe pedir duas bicicletas de Natal (para ela e eu andarmos juntos)? Abraços, ‘Xis’.



14/04/2010 - Prezado Papai Noel,
Embora o meu aniversário esteja chegando (daqui a uma semana), já sei que o meu sonho da bicicleta não será antecipado: Todo o mundo sabe onde a minha mãe esconde presentes para as suas “pessoas queridas” – parte alta do guarda-roupa – e meus pais me darão um boneco de um personagem de animação. O Joe Nice... Até assisto o desenho na TV, mas é muito comum ver crianças com coisas dele por aqui. Desde lancheiras até toalhas, o Nice é visto em todo lugar. O senhor o conhece? Disseram que, se o senhor trouxesse algum presente com ‘ele’ pra mim, provavelmente ele não seria “original”. Mesmo quase com 11 anos de vida, não entendi bem. Não importa: a missão de trazer a bike ainda é do senhor! (risos) De qualquer jeito, ver esse boneco foi bom: É a prova que minha família já me considera um menino melhor. A garota a quem me declarei na escola riu de mim, mas admirou minha coragem. Esperança? Abraços, ‘Xis’.



15/05/2010 - Prezado Papai Noel,
Vem acontecendo muitas ações estranhas aqui na favela... Tanto que não devo mais chamá-la de ‘favela’, e sim “Comunidade”. Vem vindo muita gente de terno e gravata pra cá e há uns palcos nos vários pontos planos do Complexo onde eles gritam no microfone palavras como “igualdade”, “dignidade”, “honestidade” e “comunidade”... Segundo meu pai, são essas pessoas que cuidam da gente. Mas não posso acreditar, já que ele estava de ressaca após ter sido convidado a tomar “um copinho só” - por um dos engravatados. Ele falou isso tão feliz que eu fiquei assustado. Falando no meu velho, quando ele me viu brincando com o boneco Joe Nice, aproveitei a chance para dizer um ‘obrigado’ sincero. Ele ignorou (“se você crescesse mais rápido, já trabalharia para pagar logo o preço absurdo que foi isso!”). Como é que o senhor ganha tanto dinheiro para realizar todos os pedidos, hein Papai Noel? As lojas te dão mais desconto ou o senhor é, de verdade, o criador de todos os brinquedos? Abraços, ‘Xis’.



16/06/2010 - Prezado Papai Noel,
Começou a Copa do Mundo de Futebol! O senhor está torcendo para qual país? Todo mundo aqui já comemorou ao máximo a 1ª vitória do Brasil (que foi ontem). Principalmente o meu pai... Ele esvaziou todos os copos que viu pela frente após o jogo. Conclusão: A briga dele com a mamãe foi feia! Todos os nossos vizinhos já sabem que ele tem um sério problema de saúde. Sério, sério. Parece que o álcool o transforma no homem mais poderoso do mundo: ele mexe com o dono do bar, com os amigos, grita, esperneia, gargalha, pula... E quando cai em si (depois que dorme e acorda), fica um cara calminho e sem muitas palavras. Não pense mal dele, Papai Noel, ele não teve sossego quando criança... Meu avô sempre disse para “suar mais e ler menos” ao seu filho. 12 garrafas de cerveja libertam mais conhecimento e ousadia nele do que qualquer “puxão de orelha” da minha mãe. Eu me acho bem inteligente – e modesto (risos). Falando sério, não sei mesmo a quem puxei. Voltando a falar de Copa... Um professor contou que o senhor mora na Finlândia, um país frio e que não está disputando o Mundial. É verdade? O senhor se importa com futebol assim como nós? Abraços, ‘Xis’.



17/07/2010 - Prezado Papai Noel,
Tenho uma péssima notícia para dar... Antes que o senhor imagine “a notícia é que o Brasil não ganhou a Copa, isso eu já sabia”, não é nada disso, mesmo: Meu pai bateu na minha mãe após uma discussão sobre a bebida. Obviamente, eles se separaram... Ele foi para a cadeia e ela para o hospital público mais próximo daqui. Ele havia entrado numa “paranóia corrosiva” (ouvi isso na TV e achei parecido com a situação) desde a derrota da seleção para a Holanda, Papai Noel. Não parava quieto em casa, chorava direto e descia o morro para comprar aguardente todo dia! Segundo o meu pai, “a vida não faz mais sentido, porque todos nós somos perdedores”. Mas se 11 homens do meu país perdem no futebol, a culpa é dividida até aos torcedores? Caso seja, realmente o senhor não poderá me presentear com a bike... Pois eu também agi errado, então tudo custou o troféu para o Brasil. De qualquer modo... A briga fatal deles foi há três dias e foi ruim demais assistir tudo aquilo. O meu tio falou - depois de levar o meu pai à delegacia - o seguinte: “Infelizmente, o que nunca irá deixar a gente é a pobreza...” – Foi bom ‘aprender’ isso. Não estou triste não, acho que a prisão será boa para ele. Espero que, quando a garota da escola querer me namorar, nós não briguemos como meus pais. Assim, não quero ficar ‘abastecido’ quando crescer! Abraços, ‘Xis’.



18/08/2010 - Prezado Papai Noel,
Os caras engravatados voltaram a aparecer aqui no Complexo com mais frequência. Aliás, alguns primos meus mais velhos (que não moram por aqui, mas em outros pontos do subúrbio) disseram que um deles era o senhor! Sim! Parece que o senhor já deu presentes a eles há quatro anos! Puxa, mesmo ficando feliz com isso, crio uma dúvida na cabeça: O senhor não usava apenas aquela roupa vermelha? Nunca vi uma foto do Papai Noel vestido como patrão... Por favor, Papai Noel, responda esta carta de agosto o quanto antes, senão eu acho que não irei dormir daqui pra frente. Voltando aos caras de gravata: todos eles só falam em cima de um palanque e só ouvem quando abraçam ou apertam a mão das pessoas daqui. Pelo jeito que alguns vizinhos gritam seus nomes, devem ser homens próximos de Deus... Ora, venho ouvindo as palavras “salvação” e “solução” sem parar. Estou ficando bem assustado. Abraço, ‘Xis’.



19/09/2010 - Prezado Papai Noel,
Por que ainda não respondeu a minha carta?! O senhor prometeu! Nos encontramos há 19 dias num morro da cidade e você estava bem barbudo e de terno! Disse que iria ler as minhas cartas e escrever de volta... Como o senhor quer que eu acredite no senhor agora? Já falei à minha mãe e aos meus tios para fazerem aquilo que pediu (digitarem aquele número do papelzinho no dia das Eleições). Até pedi ao meu pai - ainda na cadeia – para levar aquilo à urna. Eu posso ser criança, mas já detesto ser enganado por alguém, Papai Noel. Estou tentando ao máximo ser um bom garoto, mas confesso que vinha esperando um retorno de incentivo após oito cartas! Agora eu me pergunto: O que acontece se vários adultos colocarem o seu número nas urnas? Você será ‘eleito’, certo? Significa que o senhor poderá dar mais atenção a quem se importou com o seu número? Pronto. Há três novas perguntas aí para me responder. Junte aí na sua conta. Se quiser falar comigo pessoalmente, irei ao Morro de novo. Até logo, ‘Xis’.



20/10/2010 - Papai Noel,
Não tem explicação para o vexame que o senhor me fez passar no dia das crianças (12/10): Além de ter presenteado com uma bicicleta apenas a garota que eu queria namorar (ela não é órfã de pai e a mãe não é alcoólatra! Ela só sente inveja das vizinhas ciclistas), você me levou ao palanque onde falava abobrinhas e quando me deu o microfone, para eu dizer meu maior desejo, você o toma de mim rapidamente após ouvir a verdade? O senhor é mesmo um mentiroso! Já que sempre eu sou ignorado por minhas cartas, acho que mandarei várias por dia agora e torcerei que sua casa fique entupida de papel. Quem sabe o senhor começa a se importar com as árvores - seres mais inocentes do que eu... As eleições já acabaram e espero que você não ganhe um trabalho de ‘político’, não no meu país. Volte logo para a sua Finlândia, Groenlândia... Deixe os brasileiros em paz! A última coisa que precisamos é de gente falsa. Até, ‘Xis’.



21/11/2010 - Noel,
Você está aparecendo ultimamente em todos os jornais (iria terminar a frase com uma pergunta, mas já que você nunca responde nada)... – é uma pena que meus familiares tentam esconder ao máximo a notícia sobre o senhor de mim. Bem, eles tentam e conseguem. Mas se você está ocupando a maioria das primeiras páginas, no lugar das fotos sobre futebol e dos sorrisos dos artistas, significa que o senhor fez alguma coisa errada... O sujeito apresentador do jornal mostrou uma foto sua num fundo cinza... Minha mãe disse para ir brincar lá fora e não ver a notícia. Enfim... Quer saber? (“claro que não”) – Não estou mais aí para você ou o presente. Graças a minha ‘promessa’ de ser alguém mais comportado, estou com notas melhores na escola e muitos elogios das pessoas. Se eu continuar bom aluno, ficarei rico e comprarei quantas bicicletas quiser. Vai demorar, mas não precisarei mais ter fé em você. Até, ‘Xis’.



22/12/2010 - Prezado Papai Noel,
Desculpe-me se por um instante eu senti ódio do senhor... Fiquei sabendo que havia um cara, muito parecido com o senhor, que queria ser político e... Ele foi preso no início do mês, condenado por uma causa chamada de ‘corrupção’. Minha mãe disse que isso é um dos piores crimes existentes e se ele fosse mesmo Papai Noel nunca iria fazer corrupção. Por isso, acredito que os carteiros dos Correios enviavam todas as cartas que mandei, no ano inteiro, para esse cara... Porque também se confundiram como eu (o senhor e ele são realmente idênticos). Bom, desde janeiro, vinha sonhando por uma bicicleta e estava “enchendo o seu saco” por ela todo mês. Porém, minha família fez uma vaquinha – e com nossos vizinhos dum morro aqui no Rio de Janeiro - e eu recebi uma bike linda de presente há dois dias. Se não fosse meu esforço para consegui-la, não a teria. E meu esforço foi motivado pela sua bondade em dar presentes aos outros. Se o senhor tinha uma bicicleta reservada pra mim, por favor, dê para uma pessoa tão pobre quanto eu era. Creio que agora o senhor receberá essa carta, então... Obrigado por tudo, Papai Noel. Feliz Natal! Abraços. ‘Xis’.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

EL JABÁ NA CRISE: COMO VIVER E (NÃO) CONVIVER COM ELE

Alguém duvida que a Indústria fonográfica irá terminar sua travessia - pela primeira década do século XXI - com os piores índices de vendagens já registrados? É fato que atribuir culpados, a essa altura da Globalização, praticamente não remediará déficit algum; o mercado consumidor dispõe de inúmeros recursos para usufruir de música. Há cerca de quinze anos atrás, a única preocupação das grandes gravadoras eram, ainda, as fitas K7 “puras”, que conseguiam filtrar as canções de sucesso tocadas nas rádios... Os artistas e seus empresários primavam pela qualidade dos discos físicos em todos os quesitos possíveis (composição, arranjos, produção, divulgação e encarte), participando do processo incisivamente junto aos executivos das corporações majors e, não obstante, os seus selos musicais subsidiários.

Contudo, graças à viabilidade de se adquirir um microcomputador em nossos tempos, a Internet conseguiu se disseminar entre as atividades cotidianas da sociedade. E com a sua importância indiscutível, mesmo o fenômeno nocivo da Pirataria de CDS (“tendência” do setor terciário informal que perdura desde o fim da década de 90) perdeu o seu espaço nos fluxos da economia: A população opta em buscar o material de seus ídolos via programas de compartilhamento (os famosos “downloads”) de arquivos, cujo sistema simples permite, até para os mais leigos em tecnologia, acharmos aquele tema da novela ou o primeiro lugar das paradas atuais. Aliás, é possível encontrar a discografia dos grupos de rock mais infames que a crítica já mencionara. O significado de música infelizmente tornou-se, para muitos, um prazer rápido; Uma sensação abreviada... O curioso é vermos que o nome dos arquivos de áudio puxado da Internet também é abreviado (“mp3”)...
Para os poucos que ainda gostam de comprar CDS e/ou DVDS, as portas se fecham numa velocidade inacreditável: Algumas lojas que, outrora, obtinham um faturamento expressivo com a venda dos artigos fonográficos, já se vêem tendo de manter seus serviços relevar a parte lucrativa relacionada ao setor de CDS. O motivo é óbvio: Quase todos os estabelecimentos que operavam apenas pelo comércio musical vieram à falência nos últimos seis ou sete anos; As razões da minoria consumidora de álbuns - ligadas a laços sentimentais, éticos, tradicionais etc. – são esmagadas pelo desinteresse de uma fatia correspondente a uns 80% da População Economicamente Ativa. Mas será apenas o fator “custo-benefício” que bloqueia o contato das massas com as mídias sonoras originais?


Sobretudo, fica mais conveniente se analisar, por hora, a redução da produção fonográfica pelos aspectos de marketing inerentes ao “cast” (o elenco de cantores e conjuntos) que as pertencem; a par dos tópicos jurídicos, que envolvem a Internet com crimes contra direitos autorais de músicos e outras burocracias: Uma vez que a Indústria está viva, devemos checar a conjuntura atual com olhos otimistas; enxergando um meio acessível tanto aos distribuidores quanto aos fornecedores: O exercício do apreço pela música aos seus clientes.

Afinal de contas, a Música é a forma de arte/expressão mais popular entre os seres humanos e, ultimamente, é perceptível a grande dimensão que outros tipos de Mídia (em especial, a impressa e a televisiva) dão à vida pessoal dos artistas mais conhecidos do país e do mundo; muitas vezes, o que o músico/intérprete produz em seu trabalho é ofuscado por algum escândalo, boato ou seus conflitos amorosos... Embora as estações de rádio na ativa ainda foquem no som acima de tudo, seus esforços de contribuir com as gravadoras não são mais tão efetivos; talvez seja pela “exploração da imagem” ou “exploração da música de trabalho"... Isso virá ao caso agora. Aqui neste blog.

Hoje, mensurar os valores do jabá é uma prática corriqueira entre as estações de rádio e as emissoras de TV. Os conceitos de qualidade e de quantidade musical caíram vertiginosamente, convergindo com os lucros da Indústria... Se o indivíduo dispôr de um empresário sagaz e um contrato com uma major, nem é necessário que ele tenha algum talento como compositor, com instrumentos ou um bom vocal; "manda a música de trabalho do(a) moço(a) embaixo de uma graninha que a gente toca!"


O nicho musical brasileiro hoje aparenta, aos olhos da massa, estar limitado apenas a nove ou dez nomes apenas (Não preciso dar nome aos bois: Basta lembrar aos caros leitores que duas cantoras, presentes nessa margem, possuem um timbre quase idêntico e tiveram bebês há pouco tempo hehehe). Ledo engano: Até mesmo o roqueiro mais underground ("peraí, eu?") reconhece a versatilidade da música nacional e como ela agrega artistas de excelência ímpar. O Repente da região Norte prova isso; O Manguebeat de Recife também... O sertanejo (DE RAÍZ! Não os fakes que vão nos programas domnicais bizarros, na nossa irritante TV aberta) do Centro-Oeste, a própria MPB (por favor, não confundir com Ana Carolina ou Maria Gadu) tem seus momentos de dignidade... Mas o jabá anula as possibilidades dos grandes conjuntos e intérpretes independentes de obterem um espaço de exposição justo; de exibirem parte de suas canções (ênfase em "SUA"; convenhamos que o teen/dance/soap opera pop atual em termos de sonoridade... Está alienado e padronizado, igual a maioria dos seus adoradores) e deixar que a audiência pondere sobre o que vale a pena curtir, que tipo de música lhes é valiosa e tudo o mais.


A sentença "Esterotipar não é legal" perde seu sentido quando o Jabá é efetuado: O pagodeiro geralmente é o cara mais bipolar da sua turma (o "Garanhão" para os amigos e o "fofinho" para as amigas); o axézeiro (Não resisto: hauahuahauha!!) é a pessoa com dificuldade de sustentar um namoro duradoro e acha no axé o som ideal para a ficação/fornicação, naquela efêmera sensação de felicidade; o funkeiro não gosta de falar muito (até sete palavras de uma vez, só) e sim de tocar o batidão possante alto, o reggaeiro bem... Precisa informar? E o roqueiro seria o desordeiro que usa preto e não quer absolutamente nada com a vida... Sim, faltam mais estilos; A estratégia das gravadoras parece desejar a uniformidade destas vertentes nos fatores seminais de um hit das paradas - refrão grudento + áudio instrumental vago/ lento/bem baixo + rostinho bonito - e produzir um ídolo periódico, não importando o conteúdo de seus CDS ou da massa encefálica de seus futuros fãs. Será que só os roqueiros que vêem alguma coisa errada nisso?


As pessoas precisam voltar a respirar música atráves das mídias, pois ela é um catalisador essencial para a expansão dos horizontes. Quiçá, se o povo vier a escutar a canção que “curte”; e após a execução dela, ouvir informações relevantes sobre o disco que a tal faixa ajuda a constituir, ele possa criar um gosto pela obra musical concreta. Além do mais, as versões acústicas dos sucessos das bandinhas de poprock fraldinha é a maior característica do Jabá nas rádios... Porque os leitores não sugerem a sua estação favorita a dar espaço ao mendigo violonista da Praça ou a banda que animou na sexta a festa do seu vizinho, por exemplo?
A Internet pode ser fonte de pesquisa de QUALQUER ASSUNTO.


Claro que a tendência sempre é martelar em nossa audição os hits (principalmente os da "Gringa") atuais. Contudo todas as vertentes e tempos musicais devem ser levados em conta nas nossas escolhas; dos clássicos até os contemporâneos, do Blues até o Dance pop e da Bossa Nova até o Forró. Demonstrar a diversidade da arte dos sons a todos os ouvidos, certamente, tornar-se-á uma experiência edificante para todas as classes sociais, cores, credos, pedigrees e times de futebol dispersos (literalmente) pelo Brasil; Amantes da Cultura, mas sem disposição para conhecer novos - e reconhecer os velhos -estilos musicais. Se o jabá e a Indústria Fonográfica terá sobrevida? Quem sabe... Ou quem duvida?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO VI

CAPÍTULO 6

PARA AS IRONIAS PACIFICADORAS



A semana transcorreu na Youkoloko em plena normalidade. A resignação transparente de um Moses pós-traumatizado, com o assassinato misterioso de um amigo “recém-certificado”, não se propagou pela sensibilidade de Aizaiah Codi; o estudante apoiava o seu chefe através de enfadonhas frases proverbiais (“o que tem que acontecer, acontece mesmo” / ”vaso que é bom quebra fácil” / ”Ruby e seu pai foram tragédias maiores, não fique mal” / “a sua vida continua” e chatices do tipo), porém todas elas vinham unicamente das cordas vocais... Tais palavras saíam sempre insossas. Era claro que Aizaiah não fora com a cara de Dylan e – mesmo se os dois fossem amicíssimos - seria difícil compartilhar emoções com uma pessoa inexpressiva 99% do tempo.
Durante os dias úteis, dois deles merecem ser lidos no diário Youko: Na quarta-feira, Monique telefonou à noite para Moses e o “intimou” a um almoço no domingo junto à família Hoshino. O senhor Toy recebera alta no hospital, portanto, Monique tendeu a ideia de apresentar o seu namorado aos pais num dia tão feliz – Moses somente sentiu uma coçada no peito quando ouviu “namoro”, mas tudo bem. Já na sexta-feira, houve uma desilusão de surpresas; uma notícia horrível e outra não tanto: A moça ligou novamente e comunicou a Debiega que o lugar do almoço seria na churrascaria Miticake! Isso gerou um inferno astral no espírito de Moses (um vegetariano que já “caíra da graça” com os caranguejos dos Codi) e uma preocupação daquelas de encher a acne facial com energia. Comer carne sangrenta de um pobre gado abatido? Moses nunca vislumbrava a fachada de uma churrascaria.
A outra novidade dizia respeito à folhinha amarela pega no trágico domingo. O autor dos trechos poéticos que desafiavam conhecimentos apareceu na YL; ou melhor, a autora.
Glynis Graumer causou um rebuliço tácito ao adentrar as dependências da loja: curvilínea, jovial, curvilínea, segura de si, curvilínea... Seguramente, a mulher mais bonita a ter ido até o balcão dos Youkos. Vestia calça de uma academia de ginástica bem justa e uma blusa branca solta nos ombros – deixando a mostra parte de seu sutiã vermelho, igual à cor dos cabelos: Tratava-se da moça que dera bombons e conselhos ao menino de Tenbrennan. Moses não ia esquecer-se daquele corte ruivo, dos óculos e de olhos verdes tão insinuantes; no meio de tanto charme, um acessório a distinguiria de qualquer outra mulher (mesmo se ela fosse feia): Um cubo multicolorido em miniatura como pingente. Eis o diálogo ocorrido no “primeiro encontro” de sexta-feira:

(FLASHBACK:)
- Bom dia (pausa para leitura do “crachá”), Moses. Acredito que você não me conheça, mas... Eu sei que você tem em seu poder um papel sujo e amarelado com letra feminina. Posso provar que sou a dona da folhinha reproduzindo a mesma grafia que leste nela... Ou você não é um curioso? (sorriso resplandecente).

Antes de Moses, Aizaiah quase desabou de lado ao convergir o seu olhar com o da mulher: Estava revestido pelo vidro das lentes, é verdade; entretanto a tonalidade de verde colorindo as córneas amolecia qualquer princípio dos homens. Moses gaguejou ao tentar falar:
- É... E-eu... Aca-ca-bei lendo... Mas pensei que não tinha va-valor algum, estando no chão da rua, e... Como vo-você descobriu que eu ha... Havia pegado um papel em Tenbrennan?

Tal questionamento era deferido; mas feito muito cedo. Ela abriu mais as pupilas e:
- Não é para ficar na defensiva comigo. Nós estávamos próximos, a centímetros de distância, frente ao bar Beerosca no domingo; O jovem que foi morto com um tiro na testa no mesmo dia era um amigo seu. Os jornais de segunda não falaram apenas de futebol.

Aizaiah foi para detrás do balcão, tão apreensivo quando Moses: Dylan fora a última vítima de homicídio fortemente noticiada, mas - agora que a “cliente” falara – não era do feitio da Polícia ou da imprensa nacional Sinderfense deixar de investigar (e entrevistar) testemunhas logo após a ocorrência de um crime. Quatro dias inteiros se foram e o Youko estava ali; quieto, sem nem saber como é a delegacia do próprio bairro... Será que a morte de Dylan fora apenas um pé de página nas gazetas ou?...
- Você. O que você sabe sobre a vida de Dylan?

A mulher reagiu à pergunta empinando o nariz um pouquinho; catou uns brincos presos a sua munhequeira de pano e pôs em suas (grandes) orelhas. Nisso, começou a rir sem pudores: Ela é mortalmente linda!
- Ah, espere aí... Espere aí... Você está pensando que fui eu que...? Hahahaha! Concluo que realmente ninguém veio aqui lhe interrogar, Moses! Tudo tem a sua primeira vez, certo? Eu não sou assassina nem fui criada nos morros de Tenbrennan: Meu nome é Glynis Graumer, detetive liberal, muito prazer (Glynis estendeu as costas da mão para Debiega).

- Oh... (Moses olhou para Codi e ele sinalizou com um franzir de testa: “beije-a!”)

Detetive liberal. Mais uma profissão nascida no início do Século XXI, que... Os Youkos nunca tinham ouvido falar desse tipo de detetive. Então, os dois disseram, em uníssono, a palavra que os homens “autorizam” as mulheres a continuar falando (“huuuummm...”):
- Caso vocês mantenham dúvidas sobre mim, pegue a minha agenda (Glynis jogou o seu celular caro em forma de parábola nas mãos de Moses!), ligue para algum dos números e certifique-se da verdade. Há atletas, policiais, parlamentares, agiotas... Esbaldem-se. (outra piscadinha)

- Na-não... Esqueça. Não é necessário.

Glynis era a paz de espírito encarnada, esculpida e revestida; O jeito que ela olhava Moses (e, de “canto de olho”, Aizaiah) fazia qualquer observador de fora da YL achar q ela seria a especialista em bichinhos de estimação e os rapazes estariam ali como fregueses. A bela fez um sinal singelo com os dedos médio e indicador e pareceu que o artigo foi atraído por ela, e não o balconista que o devolveu... Ela assumia o controle.
- Voltando ao assunto, meninos: Inicialmente, quero a folhinha suja de volta. Eu a escrevi para uma pessoa usar em salas de aula... Ontem eu acordei com outra ideia sobre a qualidade do meu texto, e então, decidi investigar “aonde ela teria ido”. E agora estou aqui... Diante do colega de Dylan Jaez. Do último amigo que ele viu antes de morrer... Quem sabe.

- Eu vou subir para pegar o seu papel... Espere, por favor.

Como “detetive liberal”, Glynis já demonstrou ser perita em desmantelar os pensamentos: Moses avançou pelos degraus, outra vez, arrasado; Suas reservas em relação ao Office-boy de Tenbrennan no instante em que o conhecera tinham lhe passado a perna, e em muitos sentidos. Aquela noite na Praça Rozendo não faria jus dos sentimentos do Youko aos amigos, - já que seu foco mental estava no Furacão Sabrina – contudo, a culpa de ser um homem com “jeito de velho” ficara semelhante a um tormento - pelo embrião imbecil de preconceito que semeara.


A folha amarela estava próximo ao computador, Moses releu a parte não rabiscada, para trabalhar sua memória:

O quê Sinderful teria de bom para oferecer a vocês, monstrinhos? Uma nação dividida em quinze províncias (ou em dois partidos políticos, como preferir) cujas formações naturais sumiram na mesma velocidade que a integridade social? Correto! Ou um ponto grande no mapa-múndi, onde tudo o que se faz é vender poder aos que podem comprar; escutar justamente os que não têm palavra alguma, e (rasura) – preste atenção - fornecer recursos mesquinhos aos trabalhadores e pais dos monstrinhos, a fim de criarem verdadeiros monstrinhos? (rabisco) Está correto também! O modo de pensar a vida, em um país como o nosso, só pode ser caracterizado a partir de comparações com a vida dos “outros”, dos estrangeiros: (rasura) Valorizamos primeiro o que vem de fora, os produtos nacionais que consumimos estão resumidos em novelas e jogadores de futebol. (rasura) A culpa ronda a mentalidade dos Sinderfenses? Lustra o conformismo popular com os abusos das autoridades? Praticamente metade dela... A outra parte tem a ver, não riam, com a palavra “sangue”... Isso é assunto para outra aula, monstrinhos; Temos que refletir hoje sobre a desigualdade das margens em relação ao centro, na superfície e na imundície também. (rabisco) Vivendo às margens da morte,...

Se o papelzinho fosse uma folha branca de tamanho padrão, Moses não iria devolver; ele tinha adorado o texto concebido pela grande inteligência - embora expressa em letras miúdas - de Glynis Graumer. Mal sabia para quem tecia elogios lendo o suflite amarelo (durante toda a semana), mas quando tornou a desafiar o assoalho perto do corrimão, com uma pisada forte, tinha noção que entregar aquela folha a sua dona significava algo diferente do conceito de “uma boa ação”.
- Ah, ele está vivo! Quis ler novamente minhas formidáveis linhas antes de se despedir... Que fofo hahaha!

- Hehehehe! E não é que ela também é convencida! – Riu-se Aizaiah, acompanhado de Glynis. Em minutos, os dois descobriram ter algum denominador comum: Moses, até entrosar-se com Codi, demorara uns quatro meses desde a “contratação” dele.

- Se todas as árvores que são derrubadas valessem as suas palavras aqui, a gente viveria num lugar melhor hehe. – reagiu Moses, tentando bajular a moça e conquistar sua amizade também.

- Está tentando me bajular? Que péssimo! Hahaha! Acredite Moses, a pessoa que pertencerá essa folhinha (Glynis pegou-a no balcão) é muito mais “escritora” do que eu. Eu só tive que ajudá-la, pois ela está impossibilitada de sair de casa agora.

- Caramba, então sua presença em Tenbrennan no domingo foi como... Uma pesquisa?

- Sim. Mas não desvirtuaremos o segundo assunto importante: Precisarei de um depoimento seu, Moses. Eu achei a morte de Dylan Jaez o fato mais inexorável já acontecido nesse ano. Creio que agora, efetivamente, está na hora de me firmar como detetive; se minha investigação for bem-sucedida, poderei entrar nos livros didáticos de História... Preciso de você.
Caramba, como Glynis fala! O “preciso de você” nem ricocheteou tanto na cabeça de Moses, quando entrou em seu ouvido interno, porque o Youko tinha acabado de adquirir outra razão para ficar inquieto: Seria interrogado por um não-policial pela morte de seu quase “amigão de fé”; além de manter-se em constante trabalho sináptico a fim de livrar-se da churrascaria com Monique e sua família. Ele escolheu virar as cartas à senhorita Graumer de uma vez:
- Veja bem, Glynis... Dá para a gente ver esse interrogatório para depois de segunda-feira? Já tenho um problemão que merece ser estudado com cautela... Não é nada ligado a delitos ou infrações não; tenho que driblar os pais da minha namora...

Por pouco, Debiega não solta a palavra que sacramentaria sua ligação com Monique.
Mas... Por que ele não falou? Glynis abaixou brevemente a sua fronte, ao balanço lingüístico de Moses, e deu um peteleco no cubo-pingente; fazendo-o virar um tipo de pêndulo:
- Certo... A namorada. Está tudo bem, então; Vamos fazer assim: Eu o ajudo com a minha força e eu perdôo a sua fraqueza, que tal?

- Eu não entendi o que disse. Perdão.

- Você é um jovem dono de uma empresa e não tem fibra para discernir um compromisso social de um compromisso amoroso? Escute, Moses... Eu sei que não o conheço bem, mas inventar uma desculpa furada para fugir dos pais da namorada não mexe na parte cefálica que lida com a consciência; Dylan está morto!... E eu temo que seu óbito esteja ligado a muitos outros bem sinistros! (pausa com respiração prolongada) Desculpe recapitular o tema de morte, pois parece que você não gosta... Se precisas mesmo de um tempo para abrir o jogo sobre Jaez, eu entenderei... Só que, por favor, pode comportar-se como um homem diante de mim. Uma coisa é alguém ser sinceramente emotivo; e outra é ser falsamente sonso.

Falar demais, Glynis falava; mas que o dom de extrair o que a dupla de Youkos pretendia levar para o túmulo corria em suas veias, era fato. Homens em Sinderful são assim: no momento em que se enturmam com mulheres recém-apresentadas, abrandam a sua abordagem de conversa - o que viria a favorecer alguma paquera – a fim de aparentar uma personalidade sensível ou compreensiva às fragilidades femininas... Boa fração das moças ainda caía em tal truque (por motivos inconclusivos). A detetive liberal, no entanto, detestava o tipo de “papinho besta”.
Moses absorveu tudo o que ela declarara; mas não se sentiu pior do que se encontrava porque não nutria uma arquitetônica amizade com Dylan e não poderia dizer algo muito prestativo... Isto define porque achou mais decoroso dialogar com Glynis após passar o próximo domingo: Sim, mesmo com uma mulher maravilhosa pedindo para ficar a sós com ele, Moses não adiou o interrogatório por fúteis caprichos – nem por “cantadas”.

- Quer ajuda com qual problema, exatamente? – reanimou o ambiente Glynis.

- Para não demorarmos muito, deixe-me resumir, Lily: Ele é vegetariano e a família da namorada o intimou para ir comer numa churrascaria no domingo! Com licença, chegou freguês. – Aizaiah reconduziu gentilmente o contato entre os dois, e o interesse do cliente pelos sabiás.

- Aaahhh... E agora eu decifro o resto: O papai da princesa é um daqueles tiranossauros radicais que nem abrem espaço para outra opção de festas a não ser as regadas à carne?

- É, por aí... Ele não deve ser um tiranossauro ou coisa assim... Mas é possível que ele tenha um preconceito danado contra nós, veganos... A julgar pela região onde mora.

- Que belo jeitinho de pensar nos outros, hã? Parabéns, Moses. Não é assim que eu...

- Não releve isso, Lily: Em um jantar na minha casa ele comeu siri. Pois não, senhor... Uma gaiola? Vou pegá-la. – Aizaiah tinha um ouvido no leão e o outro na gata; A muralha da China era uma defensora leal da verdade até no seu formato mais atômico.

A ruiva jogou o olhar em Moses com aquela expressão de surpresa que constrange a pessoa pega no flagra; Antes que o chefe da YL completasse sua desculpa - “mas foi uma recaída infeliz, eu estava muito extasiado porq...” – ele ouviu um argumento pronto pela própria Glynis:
- Esse pecado não o incrimina, Aizaiah. Eu não sou vegetariana, todavia acredito que não é tarefa fácil se ater só a alimentação com folhas, soja... Seres humanos cometem erros; Uma pena, mas erram. (silêncio breve dos Youkos) De qualquer modo, amanhã é sábado e eu virei aqui com um bom plano. Você ficará bem com os coroas e, de quebra, não engolirá nenhum boi ou porco (Graumer olhou para cima - como um monge em contemplação - em direção aos passarinhos engaiolados e iniciou a mexer no cubo). Eu garanto aos dois... Afinal, eu sou um gênio. Até mais.

Glynis saiu do Centro YL concentrada em apertar o cubo. Os meninos mantinham-se tontos por uma visitante tão... Mas tão... Inusitada.
(FIM DO FLASHBACK)
- Lily saiu de forma muito repentina ontem, não acha, Moses? – Foi a primeira frase da Codi logo nos primeiros minutos da manhã de sábado.

- Parece que ela tinha urgência de entregar a folhinha ao amigo, ou algo do gênero... Por que você a chama de “Lily”, Aizaiah? Que intimidade é essa? Hahaha (E veio Moses com sua risadinha milagrosa; para amenizar o tom repreensivo da voz).

- Porque ela pediu, oras: Quando você subiu, ela foi a cliente mais inteligível que já veio aqui. Além de ser extremamente comunicativa como você notou, ela é atenciosa com todo “ai” que você der. Eu deixei o lápis cair ontem e isso impulsionou nosso papo esclarecedor de dois minutos.

Para fazer um cara da personalidade de Aizaiah falar “inteligível”, Glynis seria mesmo um ser de outro planeta! Ela prontificou-se a contribuir com o futuro apuro de Moses com um ânimo tão brioso que, para um observador qualquer, a acusaria de ser uma irmã ou prima do Youko; e no que coubesse ao “namorado” de Monique, nada seria remediado e ele teria que mastigar os bovinos (suínos não eram a especialidade do Miticake) assados... Moses estava oco de idéias.
- Olá, bom dia! Tem hamster chinês aí? – Glynis emergiu na rua e entrou na YL, irradiando um riso de triunfo e vasculhando com o olhar os flancos da loja; ela queria um hamster.

- Bom dia, Lilylynis! – respondeu Aizaiah e Moses no mesmo segundo, tentando emular alguma felicidade igual a da ruiva.

- Hahaha! Ficaram nervosos? Devo melhorar minhas entradas surpresa. Vamos ao que interessa: O restaurante que tu irás com o pessoal é o Miticake, estou certa?

- Sim! Como descobriu? – retornou a pergunta Moses, incrédulo.

- Bom, pelo que parece, o Miticake comemora 30 anos de funcionamento este mês e seu cardápio quase todo está com novos e especiais pratos; ainda mais, eles perderam o orgulho de ser “lugar de rico”! Pois os descontos dados durante os dias úteis fizeram metade de sua concorrência fechar as portas.

Não era lá uma notícia daquelas que mudam o rumo do mundo, mas Glynis pôde mostrar aos Youkos o seu faro investigativo, eliminando assim quaisquer tentativas de deboche por parte deles ou de terceiros (Lily já acreditaria que Codi e Debiega não seriam capazes de zombar de mulheres, todavia como um “gênio” que diz ser... Não pode deixar furos em seu comportamento). A moça tirou das costas uma mini-mochila - que era mania entre as adolescentes urbanas do país – e extraiu de seu interior um aparelho preto e um auditivo; pegou o cubo-pingente por último e repôs em seu pescoço. Ela bolara mesmo um plano em defesa dos animais (assados) para Moses. Ela parou o seu cotidiano para pensar em contornar uma dificuldade de um cara desconhecido até o dia anterior... Que mulher admirável, em todos os quesitos... Até Aizaiah abriu os dentes num pequeno sorriso vendo aquele material; Moses, por outro lado, achava Glynis exageradamente misteriosa – num sentido negativo. Após recolher uma gaiolinha com roedores, Lily virou-se e desconversou:
- Puxa, eu quero mesmo levar algum hamster... Ops, perdão. Falando logo do meu plano para despistar carnívoros: Moses, tu sabes como o pai ou a mãe da moça são?

- Lamento, mas não... É um primeiro encontro para todos nós; só vi a m... Monique. Nem fotos deles eu vi e nem nada. Entretanto, acho que o pai estará com um braço engessado.

Antes de encerrar sua sentença - com um bipolar “Por que perguntou?” – o veterinário ouviu outra questão elaborada pela garota do cubo:
- Você tem preferência pelo posicionamento das mesas quando vai a um restaurante?

- É... Bom, é... Eu não gosto de sentar no centro do ambiente... Não importando o espaço público que seja; eu tenho vergonha... Eu acho que tenho. Prefiro os cantos do lugar mesmo.

- Hahaha! Bom! Eu tinha uma amiga que detestava ser muito visada também; Não devia nada a ninguém, mas... Nem quis ter um velório, acredita? Haha... Obrigada, Moses, agora ao prin...

Aversão a velórios? Em segundos, Aizaiah notou o amarelo que coloriu o rosto de seu chefe depois do comentário dispensável de Lily. Mas só Moses lhe explicaria o motivo do choque: Ruby detestava ser notada publicamente em qualquer lugar por qualquer causa (até para amarrar o cadarço ela se enfiava em vielas ou becos) e no próximo dia 22 de junho, faria três anos que o corpo dela fora embalsamado e lançado nas águas de Porcelina... A pedido da própria jovem e acatado pelos Locke. O Youko segurou bravamente a lágrima que batia em sua íris (a gotinha talvez quisesse só conhecer a ruiva tagarela!) – Desconhecendo o impacto da obscura “coincidência”, Glynis bateu palmas e pigarreou:
- Isso aqui é um ponto eletrônico, – apontando para o pequeno aparelho de ouvido – e isto é um walkie-talkie convencional com detalhes femininos: Para simular um celular comum. Cof.
- Vai nos dizer que eu terei de usar um... Ponto eletrônico? No Miticake? – Indagações iniciais de Moses; o sábado, pelo estresse, já ficava com uma “cara” de domingo.

- Relaxe... O plano não é nada complicado e muito menos envolve escândalos de alguém na churrascaria ou pancadarias com explosões. Portanto, é mais fácil passar a você as instruções no momento do almoço mesmo; até porque não quero que você relute em concordar com os rumos do meu plano... Atitude que, talvez, tu tomarias. É a única ideia compatível para a ocasião de amanhã.

- Eu iria relutar? Então há uma etapa no tal plano que é indevida, Glynis?

- Oh não, eu e minhas cordas vocais sociáveis... Estarei por lá amanhã às onze horas, Moses! Vou indo logo, o modo de ajustar o ponto está neste bilhete aqui; ainda bem que o Miticake em Meladori só tem uma filial! Em Garbania, todas as quatro unidades são distantes de tudo! Até logo, Aizaiah! (piscadela amistosa) Nos falamos! Moses, dirija-se a mim como ‘Lily’ também!

E a mulher saiu depressa outra vez... As gaiolas com os hamsters permaneciam no balcão. Codi os levou de volta a bancada suspensa de exibição da loja e soltou:
- Será que Lily pretende levar um desses para casa mesmo depois, hein Moses? Moses?

Com os olhos fixos na porta da YL, o herdeiro Debiega encontrava-se desalentado: Se ele iria ouvir as instruções de Lily in loco, através do ponto, significava que – ao menos uma vez – Moses colocaria um pedaço de carne em sua boca... A garota não havia levado em conta o terror que Moses sentiria quando se vissem neste instante; os bois e as vacas detinham a habilidade de ruminar seus alimentos, e o faziam apenas por terem que assimilar nutrientes. “Fome”, no dicionário deste vegano, era mero capricho de seres humanos! O mecanismo circulatório digestivo do gado existia justamente para os bichos mastigarem duas vezes a erva (uma na “ida” e outra na “volta”), absorver tudo o necessário e sobreviverem. As pessoas achariam que o boi faz o mato mascado voltar à língua para sentirem o sabor das folhas? Quando vômito foi sinônimo de prazer? Se a população soubesse que o gado tinha mais “ética” do que várias delas... Quem sabe o vegetarianismo fosse mias bem visto? A viagem cerebral de Moses foi interrompida numa escala em “Codilândia”:
- Ei, rapaz? Acorda! Você está bem? Está pensando na Lily, é?

- Oi? Claro que não! Estou pensando na... Na... Monique e como será amanhã, claro.

- Devo confiar que você trabalhará direito até as seis horas hoje, soldado? – ironizou Aizaiah, simulando ser o “chefão”.

- Hahaha! Gostei... Vejo que desde a visita de Lily, você está mais contente, Aizaiah. Posso concluir algo disso? – O Youko podia ter “jeito de velho’, mas não “jeito de bobo”.

- Nem cogite isso, Moses... Eu tenho namorada. – Codi ficou visivelmente desgostoso com a inversão de papéis que o dono da YL conseguiu impor a sua brincadeira.

Oh? Bem... Eu não sabia. Olhe, eu ficarei aqui fazendo tudo até as seis sim! Porque você não tira o resto do dia de folga, após o almoço? Amanhã já é domingo, dia pacífico e, no meu caso, de confraternização hehehe... – disse Moses, tentando ser, de novo, um apresentador de TV aberta.

Aizaiah assentiu com um gesto e avançou até a sua vassoura favorita; o relógio bateu uma hora da tarde e o assistente entregou a YL limpinha e “alimentada” (os bichinhos em perfeito estado) a Moses... Porém antes de ir embora desejou “boa sorte com eles amanhã” com um murrinho nas costas do Youko. Sorte era com o que Debiega mais sonhou durante a madrugada de sábado para domingo: A herdeira dos Hoshino telefonara, lá pelas nove da noite, alertando o “gatinho” a não tomar a palavra do seu pai, a não contrariá-lo, a não bajulá-lo, a não demorar em pedir seu prato e - muito menos – tocar sobre o assunto do tal atentado em Tenbrennan. Monique sabia que seria embaraçoso comportar-se como um pulha; pediu automaticamente desculpas a Moses e informou que, infelizmente, a definição de “harmonia” do senhor Toy consistia em não incomodar as pessoas desconhecidas. Se a cordialidade nascer enquanto ele me enche de perguntas, nós temos química; se a cordialidade pedir para sair, eu jogo as carnes servidas na cabeça dele... – Pensou Moses, “o valentão”. Estava tão simples viver como alguém normal e solitário nos fins de semana, o jeitão de velhaco... Por que é só mover a vida amorosa que a Terra muda de ritmo? “Sem alarmes e sem surpresas” era o lema da paz interior de Moses fazia três anos.
O Sol retornou ao Hemisfério Oeste do globo e Moses despertou focado na Kombi. Foi-se duas horas lavando a carroceria, reparando os retrovisores e trocando os pneus dianteiros (serviço de um borracheiro, claro). A Miticake localizava-se no bairro chique Eppou, - um ex-terreno baldio - aquela espécie de região onde até os hidrantes eram abastecidos com vinho chardonnay. A nova estratégia da churrascaria, conforme as investigações de Glynis, que atraía as camadas de classe média para seus domínios não devia proporcionar momentos constrangedores às famílias de ‘novos ricos’ do próprio bairro. Sinderful é um país muito engraçado: Seu povo não sabia explicar o que era o vocábulo “contradição”, mas a sociedade não respiraria sã sem o valor semântico dela.
Nem foi preciso estacionar na Rua do Miticake para Moses avistar os Hoshino: Monique, Sr. Toy e senhora mãe dela estavam parados na soleira do restaurante; As mulheres vestiam uma casual calça jeans e blusas decotadas para o verão. Toy, além do gesso em seu braço direito, trajava uma bermuda de “tiozão do churrasco” mesmo, sandálias de couro marrom e uma camisa pólo larga... Ainda bem que não tinha uma pança residual indicando “homem carnívoro”. Monique cochichou ao seu pai que aquele seria o carro de Moses, o homem acenou e o seu “genro” pediu que aguardassem que ele parasse em segurança o automóvel.
E quem estava na calçada, em posição de flor-de-lótus, perto da única vaga a 45º disponível? Glynis - com uma emplumada indumentária do vermelho mais instigante possível – saiu do meio-fio para a Kombi YL invadir o espaço entre um teco-teco e uma Mercedes.
- Bom dia, Quixote! Preparado para o duelo com cadáveres? – indagou uma vívida Lily.

- Oi, Gly... Lily. Obrigado pelo “Quixote”, caso seja um elogio.

- Hahaha! Com certeza não é; suas roupas estão meio desencontradas, não acha?

Lily possuía também um tino estilístico: Debiega calçava um par de tênis surrado com um bermudão branco e uma camisa florida (como as de um turista) amarela e laranja. Entretanto, rebateu a apreciação de Glynis com um abrir de braços para baixo, como o seu pescoço...
- Ué, tem algum problema? Acho que está na moda... Não? Meu pai adorava esta camisa e a bermuda com tênis mostram que sou um jovem normal, não está calor... Sopa de motivos.

- Hahahaha! Adorei seus argumentos! Bom, como diz o meu irmão, que seja. Olhe só: (Lily agarrou Moses pelo braço e puxou para trás de um poste) Eu dei uma olhada cuidadosa no interior do Miticake e eis (a ruiva parou para acompanhar com o olhar uma família entrando no estabelecimento; eles acharam uma mesa no meio do salão e Lily sorriu) que há, ainda, duas mesas naquele canto ali, - girou o cocuruto do Youko quatro horas no sentido anti-horário – desocupadas e cegas... Você pedirá para ficarem na da frente, e eu estarei na de trás. Já está com o ponto ligado?

- Não. Espere (Moses tirou o aparelho do ouvido e o ajustou)... Pronto. O pai dela odeia escândalos, não faça nada constrangedor... Lily... Eu terei de comer um pouco dos... Animais?

- Confie em mim, por favor. Se o meu plano fosse fazer você ingerir carne, você acha que eu ia PENSAR em te propor ajuda? Vá com eles, entre. E que os ventos estejam ao nosso lado.
O vegano engoliu em seco, fez “positivo” com a cabeça e partiu para cumprimentar os Hoshino na entrada do Miticake. Glynis contou alguns segundos após o quarteto acomodar-se na mesa do canto (tal como ela orientou, Moses apontou os lugares aos responsáveis de Monique) e foi sorrateira pela porta traseira do restaurante; com a comanda nas mãos, pôde sentar-se na mesa vaga antes de um casal de asiáticos – também recém-chegados – interessados naquele mesmo lugar. Puxou o walkie-talkie assim que catou o cardápio e o abriu rente ao rosto:
- Quixote, está me ouvindo? Câmbio... Digo: se está, estale os dedos abaixo do assento.

Moses estalou os dedos enquanto ria amarelo de alguma piada feita por Toy (Lily ouvira a palavra “Kombi”) – A mãe de Monique tomou o menu do marido e também a palavra:
- Bem, veterinário Moses... Moses de quê mesmo? Minha filha não disse seu sobrenome.

- Ah, sou Moses Debiega. Muito prazer em vê-la, senhora Hoshino... Perdoe a minha indelicadeza em não me identificar logo.

- Oh, que amor... Hahaha! – descontraiu o senhor Toy e sua bocarra de dentes dourados (num mau sentido...). O nome da senhora Hoshino é Talula, Moses (Toy calou Talula ainda muda).

Nos milésimos em que a família riu em conjunto da piadinha sem graça, Moses olhou para Lily: A ruiva havia abaixado o cardápio... Exibindo ao mundo uma expressão mórbida de estarrecimento. Moses olhou e também ficou abalado com aquela face; num “golpe” da luz ambiente, ele resolveu rodar o pescoço em movimentos circulares, para disfarçar perante o clã Hoshino. Quando o garçom que os atendeu suspendeu sua bandeja de aço inox na vertical, o Youko vislumbrou a detetive em suas costas maltratando o cubo-pingente de diversas maneiras...
Um momento: Moses deduziu - após ver o reflexo - que o quê Lily manipulava não era só um cubo... E sim um cubo mágico. Sim! O brinquedo de seis cantos e cores cujo objetivo é desmembrá-lo em cada canto (separado em nove quadradinhos) e montá-lo de volta a sua forma original (uma cor completa de cada lado). As crianças sinderfenses odiavam aquele objeto, por oferecer um desafio tão difícil, e era inviável achar um deles em qualquer loja tinha muitos anos...
- Você está bem, gracinha? – questionou Monique ao seu quase namorado – parece ter ficado pálido... – ela beijou a bochecha do jovem; o senhor Toy não gostou.

- Então, garotão! (Toy bateu as palmas das moças com força) Já mandei trazerem vários espetos para nos esbaldarmos! Hahahaha! Vamos de rodízio de carnes mesmo: Devore quantos filés quiser, eu vou pagar tudo, graças a Deus! Hahaha. – esclareceu o senhor Toy, visivelmente incomodado com o chamego de sua “pimpolha” com Moses.
Embora estivesse ganho um rosto de quem acabara de ter sido socado no estômago, o Youko juntou voz para fazer um comentário mínimo a Toy:
- O... Senhor não precisa pagar tudo, senhor Toy... Muito obrigado, mas eu trouxe algum dinheirinho aqui...

- Não e não, meu garoto! Hehehe! A minha borracharia está faturando bem faz meses e eu precisava de um domingo desses para comemorar o nosso crescimento! Que os buracos no asfalto continuem enfeitando Tenbrennan! Hã? Hã? Hahaha (piscadinha maligna)

Então era isso: Toy Hoshino era um dono de borracharia que se tornara endinheirado – e oportunista – através da “erosão” das vias públicas de transporte em Meladori; não seria estranho vinte ou trinta pneus e dezenas de suspensões furarem no meio do asfalto áspero dos bairros suburbanos por dia... Pobres são os carros que não são vacinados. (Só os carros?)
- Olhem lá, as carnes vem chegando! Oba! (outra batida efusiva de palmas) Comida!

Sem dúvidas: O Hoshino era um folião sem conhecimento de causa nenhuma. Além de Monique não ter puxado a ele em aparência, Toy não puxava para si um pingo de simpatia. Glynis prendeu os olhos silenciosos nele por um tempo; o jeito histrião de falar e gesticular, a possessão idiota pela filha e a ilusória sensação de controle da esposa espiã (pois Talula jogava olhares despudorados a um garçom e a um cliente, alternadamente) fazia um filósofo sentenciar que nem confiança em si mesmo ele tinha. O convite ao Miticake foi dado como um tiro de auto-afirmação para Toy; afinal, amizade com Moses não seria efetuada mesmo. Inclusive, pelo panorama existente nas córneas verdes de Lily, nem o namoro de Monique com Debiega engrenaria. Debiega...
- Mo... Mose... Quixote. Escute-me (respiração profunda): Pegue dois espetos de qualquer tipo e mastigue-os. Caso o palhaço aí reclame que está comendo pouco, diga que precisa aliviar o colesterol. Só mastigue e finja que engula, e só ponha na boca carnes! Faça isso, confie.

O que raios Glynis tramou? Moses não pôde mais pensar em plano quando os espetos de “picanha, contrafilé e alcatra, senhor” – “Perdão pela falta de galinha, na próxima ela virá”, foram derrubados em seu prato. Antes de suar frio ensaiando os cortes de garfo e faca, o Youko viu travessas de arroz e feijão na bancada self-service... Ali estava a salvação do seu apetite, caso tivesse salvação. Moses apertou os olhos ao colocar um pedaço de contrafilé em contato com suas papilas gustativas... Uma breve análise de seus sentimentos:
será que esses facínoras sabem o que você sentiu, hein, boi? Será que eles gostariam de serem abatidos e servirem de bóia para gados? Nenhum de nós sabe como é... Desculpe-me por moer seu corpo, não repetirei essa selvageria... Nem perto de uma panela cheia de siris.”

Moses foi, heroicamente, seguindo o proposto; mastigando quarenta vezes um pedaço de carne e botando outro novo por quase quinze minutos, enquanto contribuía a uma conversa baldada do trio Hoshino. Quando decidiu chamar Lily para (alguma) ação com um duplo estalar de dedos, a ruiva tinha desaparecido de sua mesa. Ele iria delirar... Moses não ia agüentar a pressão de estar ingerindo a gordura animal e os temperos... Traía a si mesmo por uma menina sem saber se a amava. No que a sua garganta dilatou-se para abrigar o alimento, o ponto eletrônico murmurou:
- Prepare-se, Quixote: na próxima vez que eu disser “ai”, você abrirá sua boca como se atendesse ao seu dentista, entendeu bem? Estale os dedos.

Outro estalar. Outra preocupação: Lily aprontou algo grande. Ela não lembrou a restrição de Moses para não fazer nada constrangedor... Mas ali, o fundamental era Moses não jogar aquela carne em seu aparelho digestivo; ele ficou centrado, esperando a interjeição sair pelo aparelho auditivo. Inútil. Uma moça de vermelho veio andando muito depressa, com uma travessa na mão, e esbarrou feio na cadeira do Youko, fazendo-o cair. No impacto e durante a queda, propagou-se um “ai” no canto do salão, todos se viraram... Moses sentiu um beliscão e escancarou sua boca, cheia de chicletes de carne, deitado. Entre Lily (em cima) e o piso de mármore (embaixo).

Lily levou sua boca a de Debiega e o beijou por um segundo bem marcado.

Antes que Talula ou Monique olhassem para baixo da mesa, Glynis ergueu-se de pé; dois funcionários do Miticake vieram ao seu socorro, mas ela os tranqüilizou com a cabeça, - apontando para recolherem a travessa que voou - lambendo os beiços; Moses levantou-se totalmente após tirar a cadeira do piso também... Monique encarou a ruiva e depois o jovem:
- Você se machucou? Diz! Ei, garota, preste mais atenção onde pisa! – exclamou, com volume de voz moderado, Monique, limpando o Youko com o pano da mesa.

- Mil desculpas, senhores. Mil desculpas. Enrolei-me com as próprias pernas! – Lily pontuou a frase encontrando a face aterrada de surpresa de Moses. Ela mostrou a língua para ele.

Nojento... Moses havia se livrado do pecado interpretando um filhote de ave? Glynis passara a língua e feito “faxina” da comida. Ele teve uma sensação de alívio e asco em plena simbiose! Após a fala no ponto eletrônico minutos depois, o clima foi simplificado à preocupação:
Filho de Derek Debiega e perdição de Ruby Locke... Prepare-se: A partir de hoje, és o meu aliado para acabarmos com as Organizações Coaguro.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO V





CAPÍTULO 5

O VENTRE DA BESTA


- Mas... Mas... Não é nem oito da manhã ainda...

- Dylan, eu vou de carro e calculo estar aí às dez! Hoje é domingo!

Tenbrennan é uma localidade tão afastada do âmago urbano meladoriano que uma disparidade métrica de mil centímetros entre duas residências - ambas dentro do próprio bairro – eleva a sensação de deslocamento (a pé) em mais de vinte metros! Segundo a sabedoria popular, a intensidade do Sol na área, o entulho mal cheiroso jogado nas calçadas e o pouco fluxo de pedestres são as causas deste contratempo. Dylan não alertou isto o Youko, pois foi pego de sopetão com a oração “vou de carro”:
- Você tem carro, cara?

- Sim, fica estacionado num canto aqui do quarteirão... Eu só não costumo usá-lo. A última vez foi há milênios.

- É de qual marca? É do ano? Tem sistema de som?

Foi um milagre Moses ter desviado deste canhão de indagações com tranqüilidade; ele se imaginou pegando um ônibus parador com destino a Tenbrennan, mas seria irrelevante até a ajuda da folga do tráfego dominical: O lugar está nos limites da Terra!
- Dylan... Cara, acalme-se! É só uma Kombi dos anos 90. Ajudar-me-ia para o trabalho da YL, caso eu continuasse vendendo animais de porte médio.

- Ufa... Moses, você não tem ideia do que os caras aqui estão fazendo com playboys freqüentadores de Baile Enconxa... Um dia, teve uns riquinhos que vieram, atiçaram várias minas aqui, e... Os maus elementos da área desceram a mão... Atiraram, destruíram os carrinhos importados... (pausa breve) E, ultimamente, estão pegando gosto por esta brincadeira. Essa semana, fiquei sabendo de umas seis ocorrências.

- A violência aí é tão presente assim, Dylan?
- Violência? Hahaha! Sorte a minha e dos outros trabalhadores de bem que a paz está selada entre os dois grupos... PARAMILITARES (Dylan falou alto e bem devagar para Moses englobar o significado) que comandam o comércio nos morros daqui.

- Mas o tráfico continua?...

- Claro cara. O narcotráfico já virou um estilo de vida para alguns...

Moses terminou a conversa comunicando a Dylan não estar com medo de ameaças ou represálias sem razão; desde que Monique, na hora certa da primeira troca de olhares, estivesse longe do fogo cruzado ou do sangue derramado. Dylan reclamou alguma coisa em volume baixíssimo e determinou a esquina onde se encontraria com o Youko (“a primeira após o muro branco mais sujo do universo, dobrando o Bar Tendor”). Debiega fez os procedimentos higiênicos, pegou a indumentária mais “esporte” que possuía e “voou” para analisar o estado da Kombi... Cometeu o inocente deslize de olhar o quadro de Ruby, balançando o pescoço lentamente após o feito.
E não é que a carreta estava em bom estado? Moses saiu da YL e girou o corpo para mirá-la; só precisava de um paninho, devido ao excesso de poeira amontoada de meses. Ainda dava para ver a cor verde-fosca da lataria e as janelas opacas da Kombi bem conservadas... Nem “gotinhas” de pombos havia no veículo; Justine – mais ou menos como Dylan elogiara - era um bairro fantasticamente normal para viver. Comprovado.
Kombi limpa, Kombi na estrada: o veterinário usou o mesmo molho de chaves para trancar a YL e ligar o carro. O trânsito favoreceu o arranque da Kombi aos radicais 80 quilomêtros por hora (!) e Moses entrou em Tenbrennan num tempo menor que o previsto (uma hora e meia). Analisando a paisagem pincelada com toques de cinza; tijolos espalhados pelas ruas, lixo e muitas casinhas drasticamente edificadas nas encostas dos morros. As pessoas pelo caminho viam a Kombi com atração e desconfiança... Pela fisionomia não rotineira daquele veículo, passeando na região suburbana, Moses quis crer que Dylan iria distingui-lo antes que ele pudesse ver o Office-boy parado. Assim, o carro passou a se mover mais devagar até mapear o Bar Tendor. O estabelecimento foi achado depressa, junto com a imagem embaçada de alguém se arrastando até um muro imundo na outra esquina: o Youko abriu a janela e acenou; Dylan correspondeu e com o passo acelerado veio puxar a porta da Kombi para Moses sair.
- Seja bem vindo, cara! Ao lugar onde só o Nada dura para sempre: Tenbrennan.

- Está poético hoje, Dylan? Hahahaha.

- Nem um pouquinho, isso é efeito do mundo real, não é?

Dylan alongou sua mão e fazendo careta de conformação, girou para o cenário atrás deles; Mães e suas crianças andando apressadas de um morro para o outro, homens pançudos com blusas listradas nos ombros cumprimentando-se e se aglomerando nas portas dos botequins, grupos de jovens magros com olhos amarelos, alguns sentados nas sarjetas e outros em degraus cimentados nas encostas. Como não iria faltar, camadas de sacos de lixo davam o toque estético no resto do horizonte... Moses já tinha ido a Medellia e estava “vacinado” contra os percalços das margens sociais, sim. Mas não havia matutado sobre mais (fortes) sintomas do problema.
- É... Você está com seu celular aí, Dylan?

- Não; Deixei recarregando... O que você quer com ele?

- Bom... Agora nada, certo? Hehe. ELA me deu o telefone pelo Nokeysa!

- Oh, que legal! Você apagou essa mensagem da sua ficha?

- Não sei...

Navegar na rede de computadores (sobretudo, o Nokeysa) sempre exigiu um policiamento rigoroso dos seus usuários a si próprios. A maioria dos internautas tomava tenência em relação a normas de proteção com e-mails ou mensagens pessoais, as músicas e vídeos que “absorviam” e – quando estudantes – o usufruto de pesquisas alheias, elaboradas por estudiosos, para os trabalhos escolares. As autoridades de Sinderful já haviam gerado um sistema de monitoramento para crimes pela Internet, mas ainda era muito incipiente.
- Depois eu vejo isso, Dylan... Ninguém irá fuçar minha ficha por nada.

- Bem, se você diz... Vamos achar um telefone público mesmo. Um que funcione.

De carro, os dois rapazes rastejaram pelos quarteirões rasos de Tenbrennan e contaram mais de dez orelhões quebrados consecutivos. O 11º telefone público estava na frente de um bar chamado Beerosca; Dylan e Moses saíram da Kombi e se depararam com um pessoal gritando a plenos pulmões, semelhante a uma Bolsa de Valores, assistindo algo numa televisão de tela verde: Um jogo de futebol... Eles puderam escutar alguns comentários dos fanfarrões:

- Rapaz, essa partida preliminar aí vai ser bem melhor que a pelada de hoje à tarde, hein? Hahaha! (Gole de chope)

- Tá maluco, cumpadi?! É claro que a final do campeonato hoje é uma guerra! E é claro que o Buggs vai ganhar o Rhinocero! Foi mal, compadre... Ôôôô, o Buggs já ganhooouu... (Gole de cerveja)

- Se são os juniores do Rhinocero que estão acabando com o Buggs ali, tu acha que eles tem chance? Sonha, irmãozinho, sonha! Hahaaaa... Dá-lhe, dá-lhe meu Rhinôôô... De coraçããão...

O que cativou a atenção dos andarilhos, esperando a discagem no telefone de Monique ser efetuada no orelhão, foi um garotinho puxando a bermuda jeans do sujeito sentado mais afastado da televisão: O menino choramingava pedindo um doce (ele apontava com a outra mão o grande baleiro perto da TV) para o adulto (seu pai?) e o indivíduo ficava apenas rindo do pessoal acolhido pelo cervejeiro; e para a criança, descia um rosto ameaçador junto com a palma da mão suada... Felizmente, não chegava a bater. E também não fazia o garotinho cessar as reclamações.
- Opa, está chamando, Dylan! – Moses socou animado o colega.

- Alô?... – Uma voz molenga atendeu o fone do outro lado da linha.

- Alô?... Monique?... Sou eu, Moses Debiega. Tudo bem? – o Youko entoou bem a sua garganta, dissimulando teatralmente o seu (cansativo) nervosismo.

- Oi, querido! Que bom que você ligou logo hoje, domingo... O que acha de sairm...

- Eu estou aqui em Tenbrennan, Monique! Quer vir almoçar comigo? Estou de carro. Podemos ver um filme no cinema, ou...

- Sério?! Que ótimo! Em que lugar você está? Vou para aí correndo...

Quando Moses orientou Monique sobre sua localização (“em frente ao bar Beerosca!”), ele a ouviu balbuciar alguma palavrinha e diminuir o volume da voz... Contudo, Hoshino concordou em vê-lo ali, alertando-o que viria em questão de minutos. Dylan pegou o recado e decidiu deixar Moses sozinho; para não, segundo o Office-boy mesmo, “ficar de vela” no meio do Sol forte.

- Valeu de coração, cara. Se não fosse você me ajudando...

- Você não ficaria mais apaixonado do que está agora por Monique. Acertei? Haha.

- Cala a boca! Hehehe... Diz para o Win, se for falar com ele, que estou arrependido de...

Dylan sorriu, fez sinal de “positivo” com o polegar - e os olhos bem cerrados - e foi embora para sua casa; Nisso, o Youko sentiu que estava sendo observado por alguém por perto... Virou a jugular aonde o pai desalmado curtia o futebol e, de sobressalto, percebeu uma bela moça em pé; apoiada rente a parte com graxa (para rolamento) na porta do Bar. Trajava um ‘sobretudo’ bege (o que a camuflara da visão de Moses) e botas pretas de cano longo. Seria chamada de “cafona” ou de “doida varrida” pelo povo, por causa do calor que governava, mas seus cabelos ruivos cortados até a nuca, os óculos de intelectual e o nariz comprido - ordenado com grandes olhos verdes – armaram a mulher de uma suntuosa beleza. Ela estava escrevendo em um caderninho de anotações sem parar, movendo o rosto em várias direções (desejando ver as expressões faciais dos fanáticos por futebol) momento sim, momento não. Moses cruzou os braços e sustentou o olhar na mulher, mas ela não caiu na tentação de copiá-lo.
O menino outrora desprezado pelo pai retornou ao bar dobrando a esquina, pronto para um segundo assalto; o homem aborreceu-se, se levantou e deu uma bronca - regada a xingamentos - na criança. Antes que o garotinho saísse correndo e mergulhasse esquina abaixo, a moça de sobretudo tocou o indicador na nuca dele e ofereceu-lhe bombons (sacados de um bolso). Moses e o menor esticaram as sobrancelhas, a moça deu um sorriso enviesado e uma piscadela para a criança, agachou-se e disse uma frase bem baixinha (Moses nem piscou a fim de ler os lábios dela):
Nunca aceite nada oferecido por estranhos conhecidos! Muito menos conselhos.

Trêmula de vergonha e emoção pelos chocolates, a criança assentiu com a cabeça e deu “tchau” para a mulher, olhando furiosamente o seu pai hipnotizado pelo jogo. Moses fitou-a abismado: Ela foi capaz de fazer aquele pedaço de gente entender um conselho filosófico? O menor sumiu dali com ódio do pai! Isso para uma família era péssimo! Tão péssimo quanto o indivíduo preferir 22 jogadores de futebol a um filho... Opa, Monique está vindo!
- Ooooiii, querido! – Derreteu-se a guria, atirando-se aos braços de Moses; se o Youko ficasse na Praça a noite toda, quem sabe ela chegaria vestida de noiva...

- Monique, que rápida... Estava com tanta vontade de sair de casa nesse Sol? Haha. – Moses deu um beijão na lateral de seus lábios e passou o braço em torno dos ombros da garota.
- Moses, podemos sair de perto desse... Bar? Não me sinto bem aqui. – Hoshino fez mesmo uma cara de pessoa desconfortável, o semblante triste admirando o Beerosca daria assunto para Moses conversar com ela quando se afastassem.

- Hã? Claro, claro... Vamos entrar na minha Kombi, iremos ao shopping.

Monique deu um selinho nele e eles desceram os dois degraus do Beerosca em direção ao veículo YL estacionado. De relance, Debiega contorceu a nuca quase 180 graus: A moça escritora com sobretudo tinha evaporado dali. Monique acomodou-se no banco, pôs o cinto e suspirou:
- Por que você ligou justo ali, querido? Não me importa que tenha sido a cobrar, mas em frente ao Beerosca...

- Ué, mas o que o Beerosca tem de ruim? Desculpe, eu não vi nada de mais nele. – suavizou Moses.

- É uma história cruel... Não envolve a mim, porém... Ai, querido, é melhor eu contar tudo durante a viagem agora, tenho que desabafar com outro homem, e sinto que você é especial...

Entre inúmeros soluços e tomadas de ar, Monique introduziu Moses à conjuntura da região de Tenbrennan: As Organizações Coaguro, – Maior rede de comunicações de Sinderful e uma das melhores do mundo - desde o mês de abril, empregava instalações dos complexos habitacionais na área para gravar a telenovela das dez horas (“Centelhas da Felicidade”). Contudo a protagonista da trama era uma menina rica que mudou de vida ao ouvir o Enconxa, virando uma dançarina profissional do estilo; O setor de dramaturgia da Coaguro gostou tanto daquele núcleo de gravações que decidiu instalar uma base móvel da emissora no bairro, até que a novela se encerrasse! Sendo Tenbrennan um lugar de recursos e serviços criminosamente subdivididos (hídricos, luz, asfaltamento, telefonia etc), o caminhão-quartel-general monstruoso da empresa puxava os “benefícios” unicamente para o seu trabalho.
Resultado: Os moradores suburbanos começaram a ser privados de água nos dias úteis, entre 7 e 11 e meia da manhã, a fim de o caminhão encher bem a sua “cisterna”, e impossibilitados de consumir energia elétrica aos domingos, entre 9 e 11:59 da noite; porque o caminhão parava para reparos e testes de sua fiação. Alguns dos moradores, naturalmente, tiveram a impressão de estarem ludibriados pela Coaguro; um deles era o pai de Monique (Senhor Toy Hoshino), que mobilizou a família e quatro vizinhos - na manhã da última segunda-feira - a fim de discutirem o impasse. Após receberem retornos otimistas sobre o término dos cortes, o Senhor Toy fora baleado na noite de terça, saindo de seu trabalho (Borracharia), por um homem sem camisa e com óculos escuros – segundo as palavras de testemunhas. Monique realçou seus contornos de tristeza e revolta quando tocou nesse tópico:
- Ele só estava pedindo os nossos direitos... Agora, um bandido feriu ele e... Ele está lá no hospital com um braço destr... Meu Deus... Que bom que não foi no coração! Não pode ter sido um traficante, eles sabem que meu pai é bom, nunca disse meias verdades... Ai, querido... A única coisa que meu pai tem de errado é gostar do Beerosca! Lugar cheio... De gente ruim.
(Isto também entre muitas lágrimas e muito catarro).

- Monique... Nem sei o que... Acalme-se... Olha! Chegamos ao shopping!

Diversão! Ainda bem, não é, Moses?
O protótipo de casal almoçou num restaurante de frutos do mar (Adivinha quem pagou a conta sozinho?) e mirou um filme específico para assistir: Geléia de Esmeraldas. Longa-metragem recebedor de boas críticas, sendo uma fusão maneira de aventura com romance; Os dois adoraram a ficção (e a “ficação” também), mas o final deixou a desejar, pois um dos mocinhos morreu tragicamente, acusado de traição.
Na volta para Tenbrennan, abençoada pelo poente, o trajeto estava calmíssimo. Na Rua do Beerosca, só uma briga provocada por uma turma de torcedores do Rhinocero e poucos seguidores do Buggs (os dois lados armados com garrafas e bem alterados); pelas zombarias e as risadas chiliquentas, o Rhinocero tinha derrotado o Buggs na final do torneio Regional, e isso explicava o excesso de álcool nas veias cerebrais da patota de Rhinos (explicava?)
Hoshino beijou o Youko e o aconselhou a não levá-la até a sua casa: Ela comunicara a sua mãe que iria passear com uma amiga, e levar um garoto para sua genitora conhecer justo na condição atual... Moses perguntou apenas se podia protegê-la daqueles arruaceiros (que já se preparavam para serem apartados num segundo confronto). Grande ato de cavalheirismo defender alguém de pessoas viciadas... Sem atitudes e sem sentimentos pela perda temporária de consciência. Descendo a viela adjacente a esquina da casa de Monique, Debiega quase tropeçou em uma sacola de entulho bem espaçosa. Insatisfeito com aquele monte de lixo prendendo a passagem, ele tomou a iniciativa de puxar o saco até a caçamba de coleta mais próxima... Estava muito pesada. Não havia meros resíduos ali dentro. Era um ser humano:

Dylan estava morto com uma bala na testa, dentro do saco de entulho.

Moses ficou mais do que perplexo: Seu corpo arrepiou-se como um novato entrando em um pesadelo Déja vu. Dylan... O sujeito que o ajudara mesmo não o conhecendo muito bem; o sujeito que não soube entender as reservas que o veterinário tinha da sua pessoa, mas o tratou bem - em duas oportunidades - com um senso de companheirismo inestimável. Moses começou a suar frio, as pernas ficaram mais pesadas e a garganta emperrara. O terror rendeu seu espírito. Como iria dirigir para casa? Precisava pensar em outras coisas... Como se chamava a moça que estava com ele mesmo?... Os olhos do Youko iriam saltar fora da cabeça a qualquer instante, de tanto sacudirem; até que, bem próximo da Kombi, Moses achou um pedaço de papel amarelo cheio de rabiscos em tinta roxa brilhante. Fato esquisito o bastante para Moses conseguir abaixar, pegar e guardar a folhinha no bolso.
A fim de folgar um espaço na mente, no campo de pensamentos para motoristas, Moses focou nas maiores letras da “cartinha”: Não ia ler toda em frente ao volante; embora cheia de rasuras e amassos, uma escrita que se inicia com a seguinte frase merece uma leitura carinhosa:

... Vivendo às margens da morte, ninguém dura, ninguém vê e ninguém sente... Quando o ninguém age, um alguém elimina. As crianças são ignoradas e os adultos ignorantes. A educação resume-se a futebol, a corrupção é mais uma religião no país e a família é menos um mal no mundo. Deus está contigo. Por que sua omissão? Por que não Lhe confessar que o ódio da besta age as margens da vida? ...




terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

[CONTO/FICÇÃO] 1979: AS SENHAS DA GERAÇÃO Z - CAPÍTULO IV


CAPÍTULO 4

QUANDO



Sob o assoalho criticado por Jeon Codi, Moses esteve por um triz de torcer o tornozelo após levantar-se da cama, às oito da manhã, confrontando um sábado ensolarado com seu rosto sonolento e vista arregalada. O Centro Youkoloko abriria no segundo em que Aizaiah passasse sua chave no portão; Droga... Um belo e coerente fim de semana para sair da rotina e explorar os bairros mais vulgares de Meladori, a começar por Justine mesmo! Quando essa bela ideia pousou na cabeça de Aizaiah, quase virou fumaça:
- Se você não me contar como essa decisão nasceu, fica difícil eu deixar de achá-la uma atitude babaca.

Codi veio uma hora antes do previsto, – graças ao jantar anterior e a despedida da “Vovó”, de volta a sua cidadezinha – mas aparentemente havia obliterado todas as lembranças da noite passada, porque só cumprimentou Moses e se moveu para executar suas tarefas; seu chefe é que sucumbiu a vontade de desabafar muito fácil, reforçando os laços históricos com a Muralha da China. Entretanto, Moses não contou sobre o beijo automático da tal menina... Só sobre a “ficada”.
- Cara, eu... Sonhei que estava na hora de me aventurar mais, procurar métodos de me divertir fora do meu cotidiano, entendeu? É como...

- Isso não cola comigo não, CARA (Aizaiah carregou a voz - Moses dizendo “cara” de graça não tinha razão)... Algo muito marcante mexeu com você ou na festa da Praça ou no jantar... Não sei por que não quer me dizer, mas tudo bem; não pretendo opinar nada, faça o que quiser.

O clima entre as espécies humanas dentro da YL congelou; A questão é que Moses já estava “vacinado” com este tipo de situação adversa, pois o encontro sabático excepcional que tivera com Ruby instalou-se bem em seus pensamentos. Bastava aliviar a conversa e retomar a atenção do seu confidente predileto:
- É tudo pelo papo que tivemos com a sua avó mesmo, Aizaiah... Eu vi algo extremamente especial nela, em suas frases... Não peguei direito o lance do piche e do grafite, mas só por enquanto... Irei desvendá-lo.

“Ele não pegou direito o lance”? Mesmo a influência de Jeon reinando nessa expressão, o jovem Codi não mudou a sua premissa: A garota que ficou com Moses o deixou fissurado.
- Olha, Moses: Se desejar sair para caçar a gata que ficou com você, tudo certo... Eu tomo conta das coisas o tempo necessário. É normal esperar que você não ousaria perguntar o telefone dela... – replicou Aizaiah, coçando com gosto a ferida de Debiega.

- Haha! Apesar de tudo, você puxou a veia humorística da sua avó, cara? Hahahaha! É claro que eu peguei o número dela, mas... Você sabe, ela deu e eu tentei guardar na memória; logo, depois de dormir, eu esqueci. – Moses morreu de vontade de esfregar a mão na testa; o seu orgulho o bloqueou.

- Está... Bom. Moses, vou ligar para o meu instrutor de adestramento canino. Um momento.

Moses pediu a Aizaiah, com dois gestos de dedo o pano, para ele terminar de limpar o balcão, no tempo em que seu funcionário levaria tricotando com seu professor. A cisma em saber o que era lecionado num curso de “domador de cães” foi apagada quando o primeiro cliente-freguês do dia apareceu: Giz Daysies.
Os Daysies são um mistério desinteressante para a maioria dos moradores de Justine. Uma família ridiculamente prepotente – por possuir um dos poucos imóveis com garagem dali; fãs de persianas marrons nas janelas e decorações florais esquizofrênicas (o pequeno jardim deles fazia as plantas errarem a fotossíntese, dado a quantidade desajeitada de brilhos e cores distintas... Pois Giz era um consumidor voraz de sementes). Moses, tendo anos de prática com tal comprador, mostrou sua eficiência ao agarrar pacotes de orquídeas e copos-de-leite antes que o homem lhe desse “Bom dia”.
- Olá, Giz. Está na mão o seu “arsenal” de jardinagem. Hehehe...

Ele jamais tentara ser simpático com nenhum Daysies... Será que a distância entre eles e o resto era puro - e maldito – preconceito nascido de conflitos pessoais?

- Que riso frouxo, Debiega... Viu passarinho verde ou ele que te encarou e entendeu a piada?

Pois é... Não.

- Hehehe, hoje eu acordei bem positiv... – Era inútil aproximar-se de Giz; Moses resolveu parar de sorrir, embalar as embalagens de sementes e informar o valor pago pelo idiota “Margarido”. Porém recebeu um aviso:

- Espera aí... Aproveita o troco e pegue para mim um saco pequeno de fertilizante...

- Tudo bem.

O Youko subiu a escada de madeira (para as prateleiras) com toda a cautela do mundo e não adiantou nada... Porque uma voz derrotou toda a monotonia do Pet Shop quando alcançou o saco de húmus:

- E AÍ, MOSES! LEMBRA DE MIM?

Moses teve que pendurar para manter-se na vertical após Dylan ter entrado no estabelecimento; com um malão de alça, um celular novíssimo na mão esquerda e bandana amarela.


- É o Dylan... Não é? – acusou descrente o veterinário, depois de se equilibrar em solo firme. – Como vai, rapaz? Ficou muito tempo no Evento ontem?

Posto que o Office-boy encontrava-se entretido na “cena do crime” de sexta à noite, podendo comentar alto sobre o comportamento de Moses, Debiega não perderia muito se demonstrasse um senso hospitaleiro com o colega. Afinal de contas, ele caiu na YL de repente e iria ajudar - caso bem “manuseado” – a reparar qualquer desgaste entre o promoter social Win e Moses.
O teatro das marionetes teria poucos números:
- Mais ou menos... Mas... Eu posso te dar uma informação... Em caráter particular?

- HÃ?! Sim, sim! Eu acho...

Caráter particular? Essa irrompeu tão forte no térreo da Loja que até Daysies enroscou as sobrancelhas e as narinas de assombro. Aizaiah, – acabada a ligação – de prontidão, catou o fertilizante e emprestou sua atenção a Giz. Finalmente, ele agiu como um empregado padrão: Não enfiar o nariz nos fedores alheios; Mas agora Codi estava lutando para manter seu olfato selado... Moses repensou a resposta e questionou:
- É necessário o caráter particular? Hahaha! Aizaiah, este é Dylan... É... O Conheci na Praça ontem; Dylan, este é meu amigo e braço-direito no Centro, Aizaiah Codi.
Os meninos apertaram as mãos com a maior cordialidade que cabia num sorriso; Dylan tossiu e estalou os dedos para o Youko.
- Tudo bem... Mas aiiinda deve ser em caráter particular... – murmurou o visitante.

Graças à melhora de mentalidade no dia anterior, Moses entendeu o processo de dissimulação ali no balcão: Giz Daysies continuava parado com pacotes nos pulsos, que nem um predador de galináceos deitado num ninho de gaviões. O coitado queria enturmar-se e virar um quarto elemento!
- Tenha um bom dia, Giz... A gente se vê! – Moses colocou o coração nesse falso tom de despedida; até o mais lunático – e humano - dos seres notaria que sua retirada estratégica era inevitável.

- Sim... Sim... Vou indo. – Daysies saía triste pela restrição de tal fofoca; mas não menos arrogante com os três jovens que ali ficavam. Nem um olhar de “tchau” foi dado.

O debate entre as três etnias (Aizaiah é pardo; Moses esbranquiçado e Dylan negro) poderia iniciar... Se o teor do caráter privado fosse realmente sério:
- Após você descer a Praça que nem um ladrão, nós decidimos ir até a Sabrina para saber o que havia rolado de fato... Ela não demorou em contar para a gente: Uma mina aleatória quis ficar com você, de um minuto para o outro. Não é?

- Caramba! Foi isso mesmo, Moses?

Ver Aizaiah abobado, por algum fato não acontecido a ele próprio, tinha a mesma constância do Cometa Halley. Logo, Moses ganhou mais um motivo para se orgulhar de beijar aquela menina precoce (melhor definindo: orgulho de ela tê-lo beijado).
- Exatamente. A garota veio, disse-me alguma coisa e me atacou do nada... Foi... Inesquecível. – Atente que o chefe colocou o adjetivo ideal (“Inesquecível”), a fim de exibir que adorou o beijo, mas – fingindo – não se apaixonou pela menina.

- Entendo... Então rolou tudo bem louco mesmo... Depois disso, fomos procurar de vista a garota, baseados nas características ditas pela Sabrina. Achamos um grupo de três amigas, e uma delas... Batia com a descrição dada.

- Ué, é bastante possível que vocês a achassem sem querer procurar, cara. Ela estava numa festinha atrás de paqueras e tudo o mais... Vocês, solteiros, viriam a vislumbrá-la e tentar o bote, certo? Hahaha! Não precisavam se preocupar... Daqui para frente, podemos esquecer esse Evento e pensar nas conquistas do ano que vem...

- Mas, Moses: Eu conheço uma mina de cabelos tingidos de rosa, olhos de onça, covinhas na bochecha e “corpo em formação”.

Só bastou isto para Moses voar em Dylan e segurá-lo pela camisa, mortalmente ansioso:
- E onde eu posso encontrá-la?!... Por favor... Dylan... DIGA!


- Epa! So... Socor!...

- Acho que ele completará a mensagem melhor se você tirá-lo desta situação sufocante, CARA. - sugeriu pacificamente Aizaiah.

- Oh! Mil perdões, Dylan!

No pique de um guepardo, Moses soltou Dylan e a camisa social de linho. O sujeito apenas de risada da situação e levou na esportiva:
- É... Ainda bem que você não está tão a fim dela...

- Onde ela mora, Dylan?...

- Bem, em Tenbrennan... Eu acredito.

- Como "eu acredito"? - Aizaiah proferiu a pergunta no lugar do "ficante" e com muito mais altivez; não que o Moses repaginado não o fizesse igual, porém...

- Na verdade, eu sou amigo de uma das garotas com quem ela andou ontem.


- Ah, que ótimo! Resolveu tudo. - Debiega ironizou como um profissional de humor.


- Moses, é por isso que vim aqui... Que tal você ligar seu computador, ir no Nokeysa e me incluir como amigo?

- Está bem, cara... Não tem pressa.

- Não? Depois da confusão? É que a menina amiga da menina está na lista dos meus amigos,daí é só entrar na ficha da moça e caçar a "garota do beijo" pelas fotos de perfil.


Dylan mereceria uma medalha de serviços prestados a Sociedade Protetora dos Animais; ainda melhor, um Prêmio Nobel especial denominado: "fontes de auto-estima". É o Plano mais coeso, e mais exposto a peixinhos dourados, em anos no Pet Shop YL. O cacique Youko afirmou ter uma senha para o Nokeysa; então, ele também tinha uma ficha (ou “profile”) na rede social! A trama irá se desenrolar dentro da Internet... A vida era mesmo engraçada: Moses, de vez em quando, franzia sua fronte até para camuflar a digitação lenta na máquina registradora (um teclado numérico)! Ao ver rosto tão inconclusivo, os clientes acabavam imaginando que a máquina estaria com problemas.
Legalmente, esta tática era uma lição tomada de sua irmã, Sheila; uma das escassas recordações de Moses, da época em que dizia o vocábulo ‘família’ sorrindo, esfumaçava a visão de Derek pedindo para Sheila ficar alguns minutos no caixa, a fim de que ele pudesse ir no banheiro. O primogênito de Debiega riu muito da malandragem praticada pela caçula - “a balconista” - com a senhora Mill. Sheila, Sheila... Os bons tempos não são recicláveis.
- Ei, Dylan... Dê-me o link da sua ficha depois... Eu estou ligado ao Win e ao Yosef, eu acho... Eu irei pegar a minha senha e tentar entrar lá ainda hoje; dois meses depois.

- Moses, vai realmente querer rever a mina que ficou com você?

- É... Ora, por que não, Dylan?

O único que não entendia o processo completo das baladas ali era Moses: Em geral, nos eventos sociais focados no pessoal jovem, a paquera e a sua “consagração” (o beijo) possuíam um desenvolvimento moralmente anárquico... Tanto você podia ficar com alguém, e esquecer essa pessoa um minuto depois, quanto você podia ser “traído” por seus instintos e perder sua(eu) namorada(o) fixo durante uma aventura paralela; sendo esta conduzida através de olhares, gestos e outras trocas não-verbais. De contragosto, Moses, – o mais velho daquela trinca de homo sapiens – teoricamente, era o HOMEM experiente que aconselharia Aizaiah e Dylan sobre as pretensões feministas modernas (quando no mesmo ambiente de lazer malicioso dos homens). E na verdade estava na condição de “escoteiro lobinho” perante aos mais novos! Tal situação somaria com peso ao repertório de um fofoqueiro de plantão.
- Para você ter uma ideia de como é Tenbrennan no cotidiano... O bairro onde ela deve estar nesse exato momento: Lá você ouve Enconxa por todas as direções, sobre todas as casas... E em todas as favelas... Quem não é acostumado sofre um pouquinho... Isto sem contar a vi...

- Ui.

Aizaiah emitiu a interjeição e fez cara de quem não gostou; Enconxa... Moses deduziu que este nome denotava maus presságios. Ouvir Enconxa... Oras, seria um rito de passagem feito pelas pessoas do subúrbio?...
- He, He... Ei, Aizaiah, o Moses não sabe mesmo o que é o Enconxa. – Desconversou Dylan.

- Ele parece ter comprado ingressos para o nosso mundo só agora... – comentou Codi.

- Ei, falem logo! Como age esse tal de Enconxa?

Os rapazes explicaram ao Youko sobre o estilo musical gerado na própria periferia, cuja fórmula de composição não trazia (ou não precisava trazer) noção alguma de métrica, pulsação, compasso, harmonia, afinação... Generalizando, afinação era um talento inútil mesmo para alguém que entrasse como cantor (a) nesse gênero. O fundamental no Enconxa é saber mexer o esqueleto dos seus “adeptos” através de uma batida eletrônica pré-programada - numa forma sigilosamente tratada como padrão – e sintonizada com linhas triviais de trombones, saxofones ou percussões de músicas famosas do passado. Dylan ainda salientou que a pretensão básica do Enconxa é levar entretenimento fácil ao pessoal de alma jovem “a flor de pele”: As letras libidinosas saíam da consciência dos próprios compositores (as crias do descaso social em Meladori), que, aos moldes dos seus ídolos da TV, sonhavam somente em obter popularidade e dinheiro com elas.
Aizaiah interveio num complemento especial: Embora o reflexo da cultura do machismo, da falta de educação e da pobreza de espírito estivesse escancarado nas rimas, a mídia nacional aplaudia muito o movimento cultural... Era “A força dos morros exercendo valorosa influência social” – Os ditos enconxeiros, várias vezes, figuravam como elementos cabais na evolução exagerada de acidentes provocados por bebidas alcoólicas e também os demográficos (“O número de bebês nascidos nessas áreas não é brincadeira... Ensinamento ligado ao Enconxa!”). A crítica de Codi cutucou Dylan, que começou a olhar o garoto carregado de sombras.

- Bom, completando o que eu ia falar... Ah, sim: Isso sem contar a violência, os assaltos, a presença maciça do tráfico e a corrupção informal, como estão batizando, que rola por lá... Moses, vai por mim, cara. Se você puder conversar via Nokeysa com a mina, peça para ela vir para Justine. Vocês tem que amar o bairro onde vivem; ele é belo. Sinto orgulho e vergonha de ter sido criado num lugar daqueles... Mesmo gostando muito de Enconxa e as festanças, hehehe... As minas ficam rebolando, gingando e tudo...

- Obviamente, você já escutou o novo hit do Enconxa, o tal do “Desce que eu te molho”, não é? – dirigiu-se Aizaiah a Dylan.

- Hum-hum. Por quê?

- Eu nunca escutei nada mais deplorável na vida... O que são aqueles trompetes estridentes com o vocal chocho? É homem ou mulher o intérprete? Pelo amor de Deus...

- Ei, mas tanto faz, ela é o primeiro lugar de todas as rádios da Província de Meladori!

- Só porque as rádios daqui são umas...

- Pessoal, eu vou ajustar as prateleiras das gaiolas ali e vou subir na hora do almoço... Aizaiah, cuida da clientela enquanto procurarei a minha senha?

Moses apartou uma possível briga entre os adolescentes fãs de música. Sem querer. Pois suas vontades resumiam-se todas em ligar o semi-novo microcomputador, em seu quarto, e conectar-se aos serviços Nokeysa; conectar sua ficha com a da menina "de Rozendo" o mais depressa que pudesse. Dylan, vendo que o tempo fechara de vez para ele quando Moses pegou a caixa de ferramentas, escreveu seus números de telefone e celular para o universitário e ignorou o tchau de Aizaiah. Terminando tudo o que tinha que fazer, Moses esqueceu um comentário técnico do seu assistente antes de subir as escadas (algo como ‘minhocas e fertilizantes’), devido a sua tara a fim de ver a face da guria anônima, e, de quebra, verificar o nome dela! Com Quack em seu indicador direito, Moses – meio-dia em ponto – retornou ao seu quarto e revirou tudo em sua frente. Só salvaram-se os sapatos, a calça e a camisa que vestiu para enfrentar a noite de sexta (as roupas ficariam esparramadas no chão até Deus-sabe-quando). Entretanto, não custou nem meia hora para ele desdobrar o papelzinho embaixo da porta-treco em sua bolorenta escrivaninha.
Ao ligar o computador, Moses segurava com firmeza a sua senha e o telefone de Dylan e uma mão. Na melhor versão de sua fantasia, ligaria domingo de manhã para Dylan - um oportuno “guia turístico do subúrbio"; o Youko desceria até Tenbrennan e nenhum obstáculo como instrumentais de Enconxa, latrocínios ou saneamento desumano iria obstruí-lo. Quack se assustou com o barulho emitido pela abertura da tela inicial e saiu voando ao redor do aposento; Aquela moça tinha que existir de verdade... Tanto no mundo Nokeysa quanto no mundo Não-Nokeysa. Integrando-se ao portal social outra vez, Moses checou sua ficha: Havia uns 11 recados não lidos por ele (enviados por seus amigos dentro dos dois meses no “ostracismo” - Nove recados são de convites para baladas), também possuía dois pedidos de amizade a serem confirmados (duas meninas do curso de Nutrição); após o clique no “confirmar”, Moses ligou mais duas fichas ao seu total corrente de 77. Resolveu ir à guia “encontrar amigos...” a fim de reconhecer o profile de Dylan. Quando o achou, eis a surpresa: O cara tinha 435 amigos! Será que Dylan era uma personalidade? Moses mal conhecia 17 pessoas ligadas em seu profile; como Dylan conseguia ser amigo de mais de 400? Estava ocorrendo algum vírus no Nokeysa que contaminou a sua estrutura?
Epa, não importa mais! Moses ficou branco no segundo que identificou a foto da menina... Era ela mesma, em pessoa virtual! Dylan não mentira no final das contas; a imagem dizia silenciosamente o quê Moses entendia por "cara-metade": Olhos e traços mestiços, cabelo médio rosa, sorriso orgânico e o seu belo nome: Monique Hoshino.
Debiega nem gastou seu inesquecível minuto em confirmar a inclusão de Dylan na sua lista de amigos, foi direto adicionar Monique e deixar uma mensagem para ela:

Olá, sou o cara que brincou com você no parquinho da Praça Rozendo. Queria te ver de novo. Conhecer-te melhor...
Beijos.


Recado na medida certa! A postagem bem sucedida encheu Moses de apreensão. Mais hora menos hora, Monique ficaria online e talvez mandasse um recado no ato, Moses voltou a respirar como em sua recente adolescência: Ansioso, hesitante, hiperativo... Desceu para a YL porque, além de manter um pouco de hombridade adulta através da labuta, Aizaiah devia precisar de auxílio. Deixar para checar o Nokeysa no dia seguinte pela manhã, ao raiar do Sol seria conveniente. Saber a graça da jovem e a região onde ela morava foram dois troféus que Moses recebeu naquele sábado. Ao anoitecer, Moses ligou para Dylan e pediu o seu endereço; O Office-boy orientaria o veterinário o domingo inteiro a procura de Hoshino – na hipótese que ela respondesse a mensagem eletrônica de Moses positivamente. Dylan titubeou, mas acatou em fazer o favor para o novo amigo, e antes de despedir pelo telefone, avisou a Moses: “É por sua conta e risco, hein?”
Nada vinha dando errado, até Ruby como “anja” já tinha conversado com Moses e demonstrado apoiar suas futuras metas... Desta afirmativa, Deus sempre olhara por ele! A vida reiniciara ao garoto, o amor ameaçava a atmosfera acima dele e ele não iria negá-lo. Não mais. O Sol de domingo nasceu junto com as esperanças renovadas do Youko, o computador ligado prontamente e o Nokeysa ativado. Monique entrara às 20h de sábado (segundo o horário anotado ao lado de seu recado) e respondeu o seguinte a Moses:

Você conseguiu a proeza de me achar aqui, gracinha?
Fiquei toda envergonhada... É claro que eu quero sair com vc.
Eu moro em Tenbrennan e meu telefone é: 2292-2331-3785
Já estou aguardando um convite seu... Beijoooos.


Moses nem comemorou, tratou de acordar Dylan com violentos apertos de botão no telefone... Ia incomodá-lo via celular mesmo! Nem leu as notícias dadas pelo provedor de Internet e nem desligou o estabilizador da máquina. Gritou a um Dylan grogue que ele tinha que ir até a periferia, para surpreender Monique. Lento, o boy murmurou do outro lado da linha:
- ... Mas quando, Moses?...

- É JÁ!