Foi-se o tempo em que a loja de animais Youkoloko era o melhor centro de tratamento para bichos de estimação que se tinha notícia. Desde o fim da terceira geração Ryfer – O clã fundador do estabelecimento – com a morte do senhor Debiega Ryfer, suas descendentes optaram por um flagelo gradativo da loja: as irmãs Iris e Ialin não faziam valer a reputação do império do pai e sequer cogitavam pintar a fachada do prédio - identificado por um simples “YL”. Nas palavras frequentes de Iris, a filha mais nova de Debiega: “No ano que vem, tenho fé que já estaremos livres desse inferno cheirando a passarinho!”. Além de um grande administrador, o senhor Ryfer fora um excelente veterinário. Nunca deixou de tratar bem tanto o animal de estimação quanto seu criador (o querido cliente); e que fosse por um exame ou uma castração... ou simplesmente compra de ração. Infelizmente, por mais que as filhas sentissem sua falta, nenhuma delas queria saber de bichos. A filha única de Ialin, Anneke Ryfer Metcalfe, amava animais mais do que bonecas. Sim, o negócio voltaria a ter algum futuro através da quinta geração da família:
- Manhê! Tô indo entregar a comida da Cute, ok? – A voz alegre de Anneke cobria todo o prédio, da loja aos aposentos da casa dos Ryfer. O que a menina não notou era que sua mãe ainda estava dormindo (eram 11 horas da manhã de um domingo).
- Garota, é domingo! Não há serviço hoje, esqueceu? – Iris saiu de seu quarto irritada, porém não apresentava um semblante sonolento. Ao que tudo indicava, estava pronta para ir à praia.
- Desculpa, tia... Mas a dona Phair ligou pedindo uma entrega lá em baixo. Não irei deixar a Cute passar fome, ela é tão linda... Já volto! Espero que a mamãe não tenha acordado. – A menina partiu em disparada pelas escadas com uma sacola de comida para gato na mão.
- Tenha cuidado, Anneke! Ah, deixa pra lá... A Ialin tem sono pesado mesmo. – A moça ajeitou sua blusa, recolheu sua bolsa de praia e fechou a porta de seu quarto. Iria curtir a sua folga.
Pouca gente achava possível uma criança - que nem completara treze invernos de vida - como Anneke ser tão ou mais ajuizada que a sua tia de 25 anos de idade. Se não fosse a neta de Debiega, talvez a loja já estivesse em uma queda irreversível. A menina cuidava da Youkoloko desde antes de ir para escola (acordava às cinco da manhã para varrer o estabelecimento) até depois de jantar, quando organizava todas as prateleiras para o dia seguinte. Ialin e Iris ficavam basicamente com a manutenção do caixa e os "tramites" financeiros. Há três anos o centro não contava com o serviço de veterinário; pois após o óbito do velho Ryfer, suas filhas não contrataram mais nenhum funcionário.
- Obrigada, meu anjo. Com a comida, Cute vai se acalmar. Vem cááá... – fazia biquinho a Sra. Phair para o felino que Anneke adorava. A jovem acariciou a gata antes de retornar para casa.
Mesmo tendo o status de “ovelha negra” entre os fregueses, e vários outros moradores do seu bairro, Metcalfe raramente bancava a menina mimada, preguiçosa ou travessa... Era vista pelos colegas como uma criança sem graça. Até as notas na escola não eram extraordinárias tampouco decepcionantes. A mentalidade de Anneke era exageradamente equilibrada, um espírito maduro e inabalável. Havia puxado mais o seu avô do que Ialin e Iris juntas. Sua mãe gostava de comentar da única vez que a vira chorar. Não, não foi no dia da morte de Debiega. Foi com a morte de Annie, sua cadelinha de estimação, derrotada por um câncer no ano seguinte à partida do Sr. Ryfer. Enfim, com obstáculos ou não, fechar a Youkoloko era a última coisa que Anneke desejava em sua vida, por isso conseguira arranjar um 'curso' de primeiros socorros veterinários: Era discípula de um velho amigo de seu avô - o senhor Camus Barbera. Em troca das aulas, ele pedia apenas suprimentos de cães e gatos, abandonados, para a ONG em que ele agia como voluntário. Na segunda-feira, Barbera ligou para a YL pedindo que levassem urgente comida para coelho. O roedor fora encontrado em alguma esquina do bairro. Mas o horário do telefonema preocupou muito Ialin:
- São dez horas da noite, Anneke! Nem pense na possibilidade de permitirmos que você saia por aí! Não importa se é para o velho Camus, a cidade está muito perigosa! Deixe que eu irei...
- Não, mãe. Eu quero muito ver o coelhinho; provavelmente ele é o criado pela família Moneybelt, mas eles estão viajando... E o coitadinho ficou sem comida e conseguiu sair. Deixe comigo. Conheço todo mundo aqui do bairro, não tem problema. – Impulsiva, Anneke saiu do balcão da loja, pesou um saco de dois quilos de ração para coelho e gritou à Ialin, antes de sair, algo que soou como: “Não vou demorar!”
Chegando à sede da ONG, o senhor Camus encontrava-se ali com um rapaz e uma moça bem joviais; os três estavam prestando cuidados ao coelho. Anneke foi bem recebida por eles e se prontificou a dar a comida para o herbívoro, que jantou sem se incomodar com os humanos. E todos desataram a rir e acariciar o coelho. Na despedida, a dupla convidou Anneke para voltar de carro com eles. Ela educadamente recusou, preferia ir a pé para ver se achava outro bichinho solitário na rua também... Pura desculpa: Ela não queria mesmo era atrapalhar um casal de namorados adolescentes. Indo para a YL normalmente, a menina possuía apenas os postes de luz como companhia até que, como o(a) leitor(a) provavelmente imaginou, um assaltante a surpreendeu em frente a uma rua sem saída do bairro:
- Muito bem, bonequinha! Pode ir passando os seus brincos e tudo o mais que tiver de valor aí! – O sujeito além de ter uma arma, tinha um comparsa. Ambos usavam um gorro cobrindo suas cabeças. Apesar do cenário de perigo, Anneke não se comportou como a boneca que seria:
- Antes de qualquer coisa... Boa noite, senhores. Não sei o que vão fazer com bijuterias, mas aqui está o meu par de brincos. Peguem. – Anneke jogou os cabelos e tirou os brincos calmamente.
- Manhê! Tô indo entregar a comida da Cute, ok? – A voz alegre de Anneke cobria todo o prédio, da loja aos aposentos da casa dos Ryfer. O que a menina não notou era que sua mãe ainda estava dormindo (eram 11 horas da manhã de um domingo).
- Garota, é domingo! Não há serviço hoje, esqueceu? – Iris saiu de seu quarto irritada, porém não apresentava um semblante sonolento. Ao que tudo indicava, estava pronta para ir à praia.
- Desculpa, tia... Mas a dona Phair ligou pedindo uma entrega lá em baixo. Não irei deixar a Cute passar fome, ela é tão linda... Já volto! Espero que a mamãe não tenha acordado. – A menina partiu em disparada pelas escadas com uma sacola de comida para gato na mão.
- Tenha cuidado, Anneke! Ah, deixa pra lá... A Ialin tem sono pesado mesmo. – A moça ajeitou sua blusa, recolheu sua bolsa de praia e fechou a porta de seu quarto. Iria curtir a sua folga.
Pouca gente achava possível uma criança - que nem completara treze invernos de vida - como Anneke ser tão ou mais ajuizada que a sua tia de 25 anos de idade. Se não fosse a neta de Debiega, talvez a loja já estivesse em uma queda irreversível. A menina cuidava da Youkoloko desde antes de ir para escola (acordava às cinco da manhã para varrer o estabelecimento) até depois de jantar, quando organizava todas as prateleiras para o dia seguinte. Ialin e Iris ficavam basicamente com a manutenção do caixa e os "tramites" financeiros. Há três anos o centro não contava com o serviço de veterinário; pois após o óbito do velho Ryfer, suas filhas não contrataram mais nenhum funcionário.
- Obrigada, meu anjo. Com a comida, Cute vai se acalmar. Vem cááá... – fazia biquinho a Sra. Phair para o felino que Anneke adorava. A jovem acariciou a gata antes de retornar para casa.
Mesmo tendo o status de “ovelha negra” entre os fregueses, e vários outros moradores do seu bairro, Metcalfe raramente bancava a menina mimada, preguiçosa ou travessa... Era vista pelos colegas como uma criança sem graça. Até as notas na escola não eram extraordinárias tampouco decepcionantes. A mentalidade de Anneke era exageradamente equilibrada, um espírito maduro e inabalável. Havia puxado mais o seu avô do que Ialin e Iris juntas. Sua mãe gostava de comentar da única vez que a vira chorar. Não, não foi no dia da morte de Debiega. Foi com a morte de Annie, sua cadelinha de estimação, derrotada por um câncer no ano seguinte à partida do Sr. Ryfer. Enfim, com obstáculos ou não, fechar a Youkoloko era a última coisa que Anneke desejava em sua vida, por isso conseguira arranjar um 'curso' de primeiros socorros veterinários: Era discípula de um velho amigo de seu avô - o senhor Camus Barbera. Em troca das aulas, ele pedia apenas suprimentos de cães e gatos, abandonados, para a ONG em que ele agia como voluntário. Na segunda-feira, Barbera ligou para a YL pedindo que levassem urgente comida para coelho. O roedor fora encontrado em alguma esquina do bairro. Mas o horário do telefonema preocupou muito Ialin:
- São dez horas da noite, Anneke! Nem pense na possibilidade de permitirmos que você saia por aí! Não importa se é para o velho Camus, a cidade está muito perigosa! Deixe que eu irei...
- Não, mãe. Eu quero muito ver o coelhinho; provavelmente ele é o criado pela família Moneybelt, mas eles estão viajando... E o coitadinho ficou sem comida e conseguiu sair. Deixe comigo. Conheço todo mundo aqui do bairro, não tem problema. – Impulsiva, Anneke saiu do balcão da loja, pesou um saco de dois quilos de ração para coelho e gritou à Ialin, antes de sair, algo que soou como: “Não vou demorar!”
Chegando à sede da ONG, o senhor Camus encontrava-se ali com um rapaz e uma moça bem joviais; os três estavam prestando cuidados ao coelho. Anneke foi bem recebida por eles e se prontificou a dar a comida para o herbívoro, que jantou sem se incomodar com os humanos. E todos desataram a rir e acariciar o coelho. Na despedida, a dupla convidou Anneke para voltar de carro com eles. Ela educadamente recusou, preferia ir a pé para ver se achava outro bichinho solitário na rua também... Pura desculpa: Ela não queria mesmo era atrapalhar um casal de namorados adolescentes. Indo para a YL normalmente, a menina possuía apenas os postes de luz como companhia até que, como o(a) leitor(a) provavelmente imaginou, um assaltante a surpreendeu em frente a uma rua sem saída do bairro:
- Muito bem, bonequinha! Pode ir passando os seus brincos e tudo o mais que tiver de valor aí! – O sujeito além de ter uma arma, tinha um comparsa. Ambos usavam um gorro cobrindo suas cabeças. Apesar do cenário de perigo, Anneke não se comportou como a boneca que seria:
- Antes de qualquer coisa... Boa noite, senhores. Não sei o que vão fazer com bijuterias, mas aqui está o meu par de brincos. Peguem. – Anneke jogou os cabelos e tirou os brincos calmamente.
- O quê? Bijuteria? – o outro ladrão empurrou o colega armado – E esse colar aí, ô tampinha? Pode ir tirando também porque ele não é porcaria! Isso sim é ouro! – O cara não tinha revólver, mas certamente era o mais atrevido. Metcalfe mudou o seu semblante para um olhar sério:
- Lamento. Minha gargantilha não está disponível... É presente do meu avô e só pretendo me separar dela quando morrer. – Agora sim, Anneke ficou concentrada (e apreensiva) nos movimentos dos homens.
Os bandidos olharam-se desorientados por um tempo, até o desarmado avisar a Anneke:
- Então... Então... Parece que o momento chegou! Aizaiah! Manda bala rápido nessa guriazinha!
Frente a frente com a garota (uma vez que o meliante “abusado” o jogou de volta para frente), Aizaiah praticamente havia perdido os sentidos. Tremia, piscava e gaguejava freneticamente. Não sabia se era a respiração ou a memória dele o que girava mais. De repente, ele abaixou a arma... E começou a chorar copiosamente; Anneke percebeu o gorro dele ficar úmido graças à iluminação forte da rua.
- Qual é, mermão! Por que você está chorando? – Aquilo bastou para o amigo de Aizaiah desesperar-se também. Ora, quem se sentia mais intimidado ali: Os ladrões ou Anneke?
- Cara, eu não vou fazer isso... Faça você... Vo-você tem mais experiência mesmo... – Aizaiah entregou o revólver ao amigo com a mão frouxa. A resposta a essa atitude foi imediata:
- Sai fora! Não... Não me complique mais! Agora eu estou livre! Pra lá eu não volto mais! – e o homem desarmado saiu correndo e dando saltos, olhando para trás de segundo em segundo.
Enquanto apreciava aquela amostra de “instabilidade mental” rara em seu cotidiano, a herdeira Ryfer não olhara o homem hesitante ainda parado defronte a ela, querendo falar algo. Lágrimas idiotas! Tão próximas e tão distantes das palavras ao mesmo tempo. Eis que chega a voz:
- Me... Perdoe-me, pirra... Quero dizer, menina... Jamais eu iria... Atirar...
- Oh! Vem cá, você está com algum problema? Posso te ajudar? – Anneke finalmente se ligou no cara que acabara de cair de joelhos no chão. Até a arma caiu fora de sua mão (no sentido literal).
- Ou, melhor perguntando... Posso te entender?
Aizaiah nunca ouvira aquela frase na vida, isso explica o choque que sofreu com a pergunta. Anneke precisou dar um “tapinha” na bochecha dele para checar se ele estava consciente.
- Não sei o que responder menina – uma resposta previsível –... Confesso que me senti mal... Com a sua coragem... De onde você veio?
- Bom, eu moro aqui na área. E você? Sinto muito, mas não acredito que seja um assaltante profissional, não é? – O sorriso exibido por Anneke colocava afetuosidade e deboche num só rosto.
Depois que a garota ajudou o homem a se levantar, ele balançava a cabeça negativamente. Os dois percorreram alguns metros em silêncio, e antes de chegarem à rua da Youkoloko, Aizaiah resolveu abrir a boca e quebrar sua vergonha em forma de medo:
- Não pretende me denunciar, certo? Por favor... Não posso voltar para a cadeia! Tenho que reencontrar meu filho! Juro que nunca mais iremos nos ver novamente!
Anneke parou de andar. Passou a olhar o que ocorria ao seu redor... Nada. Encarou o olhar triste de Aizaiah – já havia tirado o gorro – e concluiu: “ele disse muita coisa de uma vez só.”
- Aizaiah, visite o Pet Shop Youkoloko amanhã à tarde. Se você não o fizer, eu irei até a delegacia sim. Chegando lá, pergunte pela Anneke. Tem um abrigo público a seis quadras daqui... Boa noite.
A garota se afastou de Aizaiah, sem reação. Havia falado demais para uma desconhecida que não conseguira assaltar... Ele quis fazer uma criança de vítima, mas acabou tornando-se submisso aos comandos dela. Só restaria procurar onde a tal Youkoloko funcionava... Achando o albergue, pôde dormir mais calmo. Entretanto, sua tarde de terça foi cansativa. O símbolo “YL” necessitava de reforma mesmo.
- Por favor... Anneke está? – Aizaiah se dirigiu a Iris exibindo sua face e forma abatidas.
- Lamento. Minha gargantilha não está disponível... É presente do meu avô e só pretendo me separar dela quando morrer. – Agora sim, Anneke ficou concentrada (e apreensiva) nos movimentos dos homens.
Os bandidos olharam-se desorientados por um tempo, até o desarmado avisar a Anneke:
- Então... Então... Parece que o momento chegou! Aizaiah! Manda bala rápido nessa guriazinha!
Frente a frente com a garota (uma vez que o meliante “abusado” o jogou de volta para frente), Aizaiah praticamente havia perdido os sentidos. Tremia, piscava e gaguejava freneticamente. Não sabia se era a respiração ou a memória dele o que girava mais. De repente, ele abaixou a arma... E começou a chorar copiosamente; Anneke percebeu o gorro dele ficar úmido graças à iluminação forte da rua.
- Qual é, mermão! Por que você está chorando? – Aquilo bastou para o amigo de Aizaiah desesperar-se também. Ora, quem se sentia mais intimidado ali: Os ladrões ou Anneke?
- Cara, eu não vou fazer isso... Faça você... Vo-você tem mais experiência mesmo... – Aizaiah entregou o revólver ao amigo com a mão frouxa. A resposta a essa atitude foi imediata:
- Sai fora! Não... Não me complique mais! Agora eu estou livre! Pra lá eu não volto mais! – e o homem desarmado saiu correndo e dando saltos, olhando para trás de segundo em segundo.
Enquanto apreciava aquela amostra de “instabilidade mental” rara em seu cotidiano, a herdeira Ryfer não olhara o homem hesitante ainda parado defronte a ela, querendo falar algo. Lágrimas idiotas! Tão próximas e tão distantes das palavras ao mesmo tempo. Eis que chega a voz:
- Me... Perdoe-me, pirra... Quero dizer, menina... Jamais eu iria... Atirar...
- Oh! Vem cá, você está com algum problema? Posso te ajudar? – Anneke finalmente se ligou no cara que acabara de cair de joelhos no chão. Até a arma caiu fora de sua mão (no sentido literal).
- Ou, melhor perguntando... Posso te entender?
Aizaiah nunca ouvira aquela frase na vida, isso explica o choque que sofreu com a pergunta. Anneke precisou dar um “tapinha” na bochecha dele para checar se ele estava consciente.
- Não sei o que responder menina – uma resposta previsível –... Confesso que me senti mal... Com a sua coragem... De onde você veio?
- Bom, eu moro aqui na área. E você? Sinto muito, mas não acredito que seja um assaltante profissional, não é? – O sorriso exibido por Anneke colocava afetuosidade e deboche num só rosto.
Depois que a garota ajudou o homem a se levantar, ele balançava a cabeça negativamente. Os dois percorreram alguns metros em silêncio, e antes de chegarem à rua da Youkoloko, Aizaiah resolveu abrir a boca e quebrar sua vergonha em forma de medo:
- Não pretende me denunciar, certo? Por favor... Não posso voltar para a cadeia! Tenho que reencontrar meu filho! Juro que nunca mais iremos nos ver novamente!
Anneke parou de andar. Passou a olhar o que ocorria ao seu redor... Nada. Encarou o olhar triste de Aizaiah – já havia tirado o gorro – e concluiu: “ele disse muita coisa de uma vez só.”
- Aizaiah, visite o Pet Shop Youkoloko amanhã à tarde. Se você não o fizer, eu irei até a delegacia sim. Chegando lá, pergunte pela Anneke. Tem um abrigo público a seis quadras daqui... Boa noite.
A garota se afastou de Aizaiah, sem reação. Havia falado demais para uma desconhecida que não conseguira assaltar... Ele quis fazer uma criança de vítima, mas acabou tornando-se submisso aos comandos dela. Só restaria procurar onde a tal Youkoloko funcionava... Achando o albergue, pôde dormir mais calmo. Entretanto, sua tarde de terça foi cansativa. O símbolo “YL” necessitava de reforma mesmo.
- Por favor... Anneke está? – Aizaiah se dirigiu a Iris exibindo sua face e forma abatidas.
- Hã?! O qu-quem é... Vo...?
- Estou aqui, senhor Aizaiah... Oi, tia. Nem nos vimos hoje... Já fiz meu dever de casa, certo?
- Quem é ele, Anneke? Ele está destruído! – Iris ficara receosa com a presença de Aizaiah, e ainda murmurou irritada – Não o quero aqui, um cliente desse jeito derrubaria mais a imagem da loja!
A jovem foi empurrando Iris carinhosamente em direção as escadas, piscando o olho e sussurrando (“Descanse, tia. Deixe esse coitado comigo”). Ela voltou, sentou-se na bancada e retomou o encontro da noite anterior nos mesmos termos utilizados antes:
- Posso te entender? – Anneke deu o sinal para Aizaiah se explicar (ou desabafar).
- Meu filho... Fugiu de casa após o meu divórcio com a mãe dele... Nossa família além de miserável sempre foi... Desorganizada... Admito que eu gastava nossa pouca grana com bebida... Mas minha mulher me traía! (longo choro) E que isso importa agora?... Nosso filho partiu numa madrugada...
Antes que voltasse a tremer, Anneke deu mais um daqueles tapas de atenção no sujeito. Ela e seu rosto sério ordenavam que Aizaiah continuasse essa historinha até o fim:
-... Ele... Deixou uma carta dizendo que iria para o porto... Não queria ver mais os pais brigarem todos os dias, ele... Ele tem mais ou menos a sua idade!... Enfim, ele pretendia entrar clandestinamente no primeiro navio que estivesse lá, porque para esse lugar não voltaria (choro)... Mas, dias depois, vimos num programa de TV uma notícia ao vivo: estavam flagrando o movimento de um navio daquelas empresas que escravizam crianças! Foi o único atracado no porto por semanas, sabíamos disso porque morávamos muito perto da zona portuária!... O cara da TV disse que... Que... Provavelmente eles iriam parar em Hong Kong! (pausa para choro dramático) Aí, minha mulher e eu conhecemos uns sujeitos e entramos numa quadrilha para roubar um banco... Precisávamos de muita grana para viajar ao outro lado do mundo... O plano deu errado... E fomos presos!
As fungadas de Aizaiah seriam insuportáveis caso a história que contava também fosse; Metcalfe esperou e o deixou se recompor (bem, ela nem sabia o motivo de ele realmente ir a “YL”):
- Aquele cara de ontem ao meu lado... Era da quadrilha. Fomos os primeiros a sair do xadrez por falta de provas... Porém ele era um dos cabeças. Um irmão dele arranjou a arma para nós e ele, achando que estava fazendo caridade, me cedeu o revólver para saquear uma casa ou uma pessoa, pois a prioridade seria achar meu filho!... E o primeiro ser que vi na noite de ontem foi você... Obrigado por abrir meus olhos... Eu não sou uma pessoa má, Anneke. Apenas sou um amaldiçoado ou sei lá... Um azarado.
- Azar? Humpf, não sabe o que é isso... Você é apenas um infeliz mesmo. – Definiu Anneke.
O ambiente conspirava para a menina ter a palavra (não havia freguesia naquele momento):
- Perdi dois dos seres mais importantes para mim, num intervalo de um ano, por dois acidentes! Você não sabe o que é azar... Meu vovô Debiega era o dono dessa loja e nós criávamos uma cachorrinha chow chow. Ela foi um presente importado pelo meu pai que é Oficial Militar; era o meu xodó, a Annie... Ela curou meu 'mal' (Anneke asepou as orelhas) de ser uma criança tão inquieta: Sempre calma e trazendo harmonia a nossa família e aos negócios. Vovô lia a Bíblia com ela no colo, e ele nem era tão religioso assim... Só que Annie inspirava meu avô a refletir mais. Ela o entregava um livrinho-miniatura da bíblia sempre que saía de casa. No único dia em que meu avô não pôs o bibelôzinho no bolso ao sair... Ele morreu assassinado.
Uma pausa para o choque de Aizaiah. Anneke continuou depois que o homem assentiu:
- Foi em um assalto... Meu avô não entregou esse pingente aqui (Anneke mostrou sua garagntilha de ouro). É da minha bisavó e ele jamais o daria, pois o brasão da nossa família está cravado nele. Bem, o assaltante tinha apenas uma navalha miserável, mas conseguiu perfurar o peito do velho... Se a pequena Bíblia estivesse no bolso... E a... A Annie...
Possivelmente aquele instante ficou marcado na memória de Aizaiah; porque foi o mais próximo que um estranho esteve de presenciar Anneke derramando uma lágrima. Contudo, o choro não aconteceu de fato:
- Annie ficou tão deprimida quanto minha mãe e a minha tia... E acabou por desenvolver um câncer raro no estômago. Meu tio veterinário Barbera disse que a "causa-mortis" foi a tristeza que a rendeu... Ao invés de tomar o seu remédio certo dia, ela acabou ingerindo gotas de mercúrio, acelerando a evolução do tal tumor e a matando em questão de minutos. A culpa foi minha por deixar um termômetro cair... (suspiro tímido)
- ... Enfim, se eu me virar uma especialista em bichinhos no futuro, honrarei o legado do vovô e, de quebra, compensarei a morte da Annie salvando outros animais.
Ser solidário não seria o jeito de um ex-quase-ladrão agir, porém quando Aizaiah pensou que uma mão no ombro de Anneke iria aliviá-la daquele flashback ruim, foi desarmado (de novo!):
- Acho que foi pela soma dessas perdas que eu amadureci tão rápido... Muito bem, Aizaiah, eu irei à delegacia. E se tentar impedir, eu vou gritar. A mamãe e minha tia não são lá pessoas muito tranquilas.
Transbordava da face de Anneke sua sinceridade, incrível. Perante aquela voz imatura e irredutível, Aizaiah não tinha nada para argumentar. Voltou a ficar com os olhos vermelhos, mas se levantou lentamente e saiu da YL melancólico...
Ser solidário não seria o jeito de um ex-quase-ladrão agir, porém quando Aizaiah pensou que uma mão no ombro de Anneke iria aliviá-la daquele flashback ruim, foi desarmado (de novo!):
- Acho que foi pela soma dessas perdas que eu amadureci tão rápido... Muito bem, Aizaiah, eu irei à delegacia. E se tentar impedir, eu vou gritar. A mamãe e minha tia não são lá pessoas muito tranquilas.
Transbordava da face de Anneke sua sinceridade, incrível. Perante aquela voz imatura e irredutível, Aizaiah não tinha nada para argumentar. Voltou a ficar com os olhos vermelhos, mas se levantou lentamente e saiu da YL melancólico...
Aizaiah não tinha um destino e nem o que fazer: Sua mulher ficaria um bom tempo na prisão (ela havia agredido um bancário), e o seu filho em Hong Kong continuaria confeccionando algum bem material que, injustamente, sairia mais caro do que o seu sofrimento. Ele resolveu retornar ao albergue; já anoitecia e assim poderia ter o sono mais comprido da sua vida. Quem sabe adormeceria para sempre em breve... Ao amanhecer, decidiu passear para espairecer, tentar encontrar um rumo. Logo, avistou uma moça acompanhada da garota Anneke. Ela apontava nervosa para o pescoço dele:
- Tá bom, tá bom... Deixa comigo, mãe. Aizaiah! Pegue esta passagem de avião e me escute: Eu levei o seu revólver naquela noite, expliquei tudo a minha mãe e nós tiramos todas as impressões digitais nele com luvas e objetos cirúrgicos veterinários... Isso é o de menos. Sua arma era uma pistola de alto nível. Ela vale 3.000 dólares de recompensa ao entregá-la à Polícia... Com a passagem em mãos, faça um passaporte e viaje até Hong Kong. Chegando lá, parta imediatamente para a Zona Portuária da cidade e procure pelo Tenente Metcalfe: Ele é o meu pai e estará chegando lá, com uma embarcação da Marinha nacional, só para ver você. Assim, você terá a ajuda necessária para encontrar o seu filho.
- Não... Não creio... E minha arma caiu e... Eu nem percebi! Deus... Como sou imbecil...
- Você não é imbecil. Apenas não serve para ser ladrão. Vá à Polícia Federal e faça um passaporte, vai! O seu vôo sairá em duas semanas! – Anneke empurrou mais dinheiro na mão de Aizaiah. – Faça o melhor para reconstruir sua família. É o seu tesouro.