
CAPÍTULO ZERO
NEVE DE SORVETE
Eis um trecho da última conversa de Moses, ao telefone, com um amigo do colégio:
- O que é isso, Moses! A festa do Padre Rozendo rola uma vez a cada quatro anos! A quantidade de pessoas que vão para lá é imensa! Vai ter muita mulher, garoto! É para matar a fome, a sede e tudo que nos incomoda em um dia só!
- Esquece cara... Eu preciso estudar para a prova. Além disso, ainda vou conferir se não esqueci nenhum exercício da professora Cassandra. Admito que não suporto a matéria dela...
- Não muda de assunto, irmão! Até eu sei que ninguém lá da sala gosta de nanobiologia, mas nem por isso a faculdade impede que você vá se divertir! Deixe de encarar a vida tão a sério, vamos zoar... Aproveitar a vida!... Opa...
- Isso foi uma indireta, não foi?
- Ih, Desc... Foi um... Não queria dizer algo assim... Calma.
- Não vou ofender você, Yosef. Pelo seu tom de voz percebo que você não disse por querer. E quer saber? Mesmo a frase tendo intenção, não poderia falar nada, certo?
- Moses, Moses... Qualquer coisa vá para lá amanhã, eu tenho que ir dormir logo porque a conta do telefone aqui em casa é... Bem, eu e a turma vamos ficar no bar a direita da Praça Rozendo. E depois, vamos para a praça mesmo... Para a guerra. Tudo bem? Boa noite cara!
Moses, Moses... Provavelmente o universitário mais cabisbaixo da face da Terra. Não por ter (muitos) problemas com dinheiro – com uma loja Pet Shop (ou, segundo seus planos futuros, um centro de tratamento animal) herdada do seu pai - ele é o único empreendedor de vinte anos que conhecia – e muito menos problemas envolvendo mulheres, pois era o menino mais “mirado” pelas garotas do curso de veterinária. Infelizmente, nem ele consegue explicar o que falta em sua vida a fim de não viver sentindo-se tão melancólico. Devido às respostas negativas quando o convidavam para sair e badalar no fim de semana, seus colegas na universidade costumavam dizer sempre, em tom de brincadeira, que Moses tinha “jeito de velho” – Mas é claro que os jovens já não estão mais com idade para brincar com essas palavras... Moses tem um jeito diferente sim, movimenta-se do mesmo jeito que o seu falecido pai, e se possuía seus colegas atuais era porque nem ele, nem eles, nunca se consideraram amigos desde o começo. O rapaz abria um leque de argumentos, para falar desde economia nacional até sobre amizade, e não conseguia explicar-se bem nem com a ajuda do vento. Além de jeito de velho, Moses ainda conta com a dificuldade de se expressar... Como se a complexidade para abrir um ratinho cobaia e checar quantas artérias estavam ruins (atividade comum em suas aulas) fosse nada perto da complexidade de revelar a alguém seus pensamentos e opiniões sobre a vida – ou, no caso desse jovem, a falta dela.
- É mesmo, o Aizaiah já foi embora... Acho que nós dois esquecemos a comida do Quack, vou voltar lá embaixo. – falou sozinho Moses, referindo-se, respectivamente, ao seu único empregado e a sua calopsita de estimação.
Aizaiah Codi não é só o único funcionário do Pet Shop Youkoloko como também acumula a função de melhor amigo de Moses. Bom, Codi tem três anos a menos que o seu chefe e, sendo assim, aprimorava a sua capacidade de escutar, compreender e opinar sobre os conflitos e dúvidas inerentes ao fim da adolescência, que ainda perturbam o ‘senhor’ Moses.
Youkoloko - ou YL para os “bons entendedores” - nas palavras do pai de Moses, Derek Debiega, é “o legado do presente para as conquistas do futuro!” – Moses lembrou-se vagamente da frase enquanto descia às escadas em direção ao térreo, pois quando se virava para a esquerda para tocar o corrimão, via uma fotografia antiga dele com seu pai, sua mãe, sua irmã e a mascote Eden – a calopsita mãe de Quack. Dentre os seres da memória, a ave, mesmo sem sorrir, ironicamente passava mais alegria que o restante do clã Debiega. Pelo que Moses sabia, a sua irmã – Sheila - só tinha ligação sanguínea com ele por parte de mãe. O casal Derek e Ava não possuía a melhor relação conjugal do mundo após a concepção dos rebentos. Contudo, Moses apenas gostava de recordar a ótima relação que tinha com Sheila; até Ava pedir o divórcio e levar a garota para outra região do país... Isso já havia alguns anos, uma década talvez?... Moses não parou para calcular o tempo que passou, teve medo de que também lembrasse, como um bônus, de algum conflito típico fraternal; intenso o suficiente a fim de deixar alguma seqüela, negativa, nos sentimentos de Sheila em relação a ele... E voltou a focar em que ração dar a Quack e aos passarinhos “comerciáveis”.
- Pai, como o senhor pediu a mamãe em namoro?
- Eu não pedi, moleque! Esse foi uma parte do propósito!
- Propósito? Como assim?
- Só vou dizer uma coisa a você, filho... Eu não conheço todo o mundo, e todo o mundo me assustava. Não por medo do desconhecido, de criminosos ou da morte, nada disso... Mas pela impotência de não conseguir superá-lo. Só isso que você deve saber, por enquanto.
- Mas por que tanto mistério, pai?
- Se eu falar como conquistei Ava, você talvez não tenha o mesmo êxito quando decidir completar a sua vida... Esse macete do amor você irá descobrir sozinho, Mos...
- EI!
Quase toda semana, o seu cérebro recorria àquela lembrança, encaixando-a aos sonhos de Moses; mais uma vez, QUASE ele avançava mais naquele diálogo que tivera com o seu velho, em uma última tarde de inverno, na Praça Rozendo. Sabia apenas que era uma última tarde de algum inverno; não recordava com exatidão o ano, mas que foi num tempo próximo do rompimento de sua família, foi... “Todo mundo? Será que esse termo tem duplo sentido? Mesmo se não tiver, será que o pai quis fazer charada? Macete? Ele não era tão misterioso depois que a mãe partiu, por que será?” – Moses fazia a si mesmo essas perguntas toda vez que o sonho o visitava. Sonhos realistas são como parentes distantes no natal: Na chegada, ambas as partes se estranham e estão sujeitas a esquecerem uma da outra após a entrega do presente, mas quando há histórias para contar, resolvem aparecer no ano novo, na páscoa... Mas o tempo encontra-se num vazio mês de junho!
- Moses! Moses! Já cheguei, valeu?
Aquela voz alta só podia ser de Aizaiah. Por mais que o adolescente não fosse trabalhar cedo, por causa do colégio, ele tem em seu poder as chaves do cadeado, caso acontecesse qualquer fato incomum (se Moses não estivesse presente no estabelecimento, a casa do jovem empregado ficava perto dali; e esporadicamente, as aulas extracurriculares da faculdade eram necessárias para Moses). Moses tranqüilizou-se aos poucos ainda na cama, devido ao sonho; após uns segundos, levantou e aprontou-se para ir à Universidade. Antes de sair, deu algumas instruções a Aizaiah, fazendo o máximo de esforço para não perguntar por que o menino bateu seu ponto no cantar do galo, às sete horas da manhã - se ele “pegava” às duas da tarde.
- Pode deixar comigo, Moses. Eu sei onde estão as vacinas e a ração especial, sim.
- Legal, então... Daqui a pouco estou aí, até mais.
Seguindo a rotina, é Moses mesmo o responsável por abrir a loja em algum minuto entre onze horas e meio-dia, raramente o expediente começava de outra maneira. “Talvez Aizaiah não foi à escola por causa do conselho de classe... É, é isso sim”. Uma política que Moses adota desde que conhecera o jovem – fato datado de tempos atrás, pois Derek e o pai de Codi construíram uma grande amizade – Foi batizada pelo próprio de “muralha da China”: A vida dele anda e a do seu subalterno também; quando ele visse problemas que sente ânsia de cuspir, bastaria abrir a boca em direção ao “muro” (Aizaiah), para aliviar suas queixas. Independente se Codi importa-se ou não com a vida de Moses, sempre ele diz uma letrinha sobre o que acha ou deixa de achar. Mas em compensação, atrás daquele muro não aparentava ter nenhum problema – pelo menos não para o patrão. Nunca Moses julgou que Aizaiah marcou presença no serviço de cara amarrada, triste ou com vontade de falar algo desagradável. Em miúdos: Se, superficialmente, está indo tudo bem com a “China”, que continue as nossas relações padronizadas, seguindo a divisão internacional do trabalho. Porque até acontecer uma revolução...
- E aí, Moses! Veio na hora certa! – Incrível a facilidade que Win possuía de abrir a boca e fazer com que metade do campus virasse a atenção para o seu discurso. O - auto-intitulado - melhor amigo de Moses inoportunamente aproximou-se do rapaz piscando e executando movimentos um tanto dissimulados. Parece ensaiar constantemente um novo vexame.
- Fala, Win... Preciso perguntar por que está girando a cabeça e fazendo caretas?
- Irmão (falou Win, colocando o braço no ombro esquerdo de Moses)... Tenho uma bomba para contar para você... O Furacão Sabrina vai à festa da Praça!
- Ué, o que isso tem a ver comigo? – Nem é preciso dizer que Moses quer terminar a conversa o quanto antes e entrar na sala.
- O quê? Irmãozinho, a Sabrina sempre esteve a fim de você! Não esqueça que ela é a Miss da faculdade! Amanhã pode ser o melhor dia da sua vida! – Com toda a alegria que Win disse aquelas palavras, deixou transparecer que pode matar um urso para trocar de corpo com Moses.
O jovem administrador veterinário olhava para o céu com uma postura pensativa: Indubitamente Sabrina era muito bonita mesmo. Cabelos cacheados impecáveis, olhos da cor do mel (Moses definiu melhor em sua cabeça: “Cor do favo da colméia!”), corpo de modelo numa estatura ideal, o nariz “certinho”... O que raios será que ela viu nele para “estar a fim”? Ele tinha um rosto gordo, corpo desprovido de porte atlético (porém não era magro), olhos castanho-escuros e cabelos “lambidos” com uma franja dupla esquisita... Moses alega que os fios de cabelo teimam em ficar cobrindo sua testa nas laterais, e não adiantava cortá-los. Bem, as meninas de qualquer jeito gostavam. E o mais interessante – concluiu Debiega mentalmente – é o fato que Sabrina não estava no curso de veterinária... Ela almeja tornar-se uma nutricionista. Depois que voltou a si, Moses olhou Win em toda a sua extensão. Sim, o sujeito falastrão é meio roliço, com mãos e pernas curtas; suas roupas coladas no corpo não o ajudavam virtualmente em nada; A bela paisagem arborizada do campus de ciências biomédicas da Universidade Pindorama permite que os estudantes ampliem o campo de visão e Win acaba sendo um aluno bem notável, no sentido literal do termo. Moses tratou de andar mais rápido em direção a sua turma, usando a desculpa de precisar falar com Yosef na biblioteca. Assim deixando tal melhor amigo para trás.
Ao decorrer das aulas, os olhares corriqueiros e as conversas paralelas ao discurso explicativo dos professores não mudaram o seu curso em nenhum momento. Yosef encontrou Moses no momento em que ele adentrou na sala. O colega sentou-se ao seu lado e tratou de ratificar o que Win comunicara antes: Sabrina estava mesmo a fim. E mais, o assunto já tinha se libertado do círculo de boatos e residia na boca e nos ouvidos de, pelo menos, metade das garotas da Universidade Pindorama inteira! Depois dos beijinhos de despedida nas garotas da turma (10 mulheres para seis homens no sexto período do curso de veterinária) e de cumprimentar Yosef e Win, Moses caminha para casa munido de idéias sobre como estragar o previsível “encontro” entre ele e o Furacão Sabrina. Ao contrário da ala masculina que estudava no Pindorama, ele nunca havia enxergado a aspirante à nutricionista com olhos de coelho, muito menos trocado três frases diretamente com ela (os dois já foram apresentados em algum bate-papo num passado recente, mas Moses só correspondeu com um “beleza” uma piada da gata sobre suas roupas). E o mais chato é o fato que Sabrina com certeza não iria gostar, para dizer o mínimo, de uma rejeição do sexo oposto em um evento amplamente divulgado e popular, como é o caso da iminente festa tradicional do Padre Rozendo, na Praça que levava o nome célebre: Jubileu Rozendo foi um religioso famoso por ter sido grande ativista social no desenvolvimento da cidade.
Já que faltava ainda um pouquinho mais de 24 horas para a festa, Moses optou por desligar-se do tema enquanto se dedicava ao trabalho. Quinta-feira é dia da habitual visita da senhora Mill com a sua cadelinha poodle Donna às 14 horas, visando fazer um check-up do animal e criando as oportunidades para o jovem exercitar, cada vez mais, suas habilidades de medicina veterinária: Ele não deixa de gostar bastante e se possuí algum sonho em sua vida, ele traduz-se na transformação do Estabelecimento Youkoloko no Centro de Tratamento Animal Mellonyouko depois da sua graduação. O termo “mellon” seria uma homenagem à...
Bom, uma vez que Moses não faz nada de especial durante o exame em Donna, está na hora de explicar os acidentes do passado que fizeram Moses tornar-se a espécie de “acidente social” para os seus colegas no presente... Amigo leitor, não envolve dinheiro! Mas envolve uma mulher.
Ruby Locke foi a pessoa mais importante relacionada à adolescência de Moses. Essa moça e ele conheceram-se aos 11 anos de idade, num memorável primeiro ano do ginásio no colégio Rebanho. Porém, logicamente, custou um pouco de tempo para iniciarem um relacionamento firme – Não havia muita desarmonia entre eles, em geral, as “crianças grandes” da turma sempre foram unidas – ou para terminarem de vez com a infância: Ambos aos 13 anos decidiram namorar, concluindo a soma dos fatores ‘vontade interna’ e ‘pressão externa’, e durante três anos tudo o que eles passaram fora fantástico... Até em que certo sábado à noite, dormindo com Moses no quarto dele, Ruby ouviu as seguintes palavras soltas por seu namorado perdido no abismo do sono: “Sheila... Sheila... Só você consegue brincar disso... E tome cuidado com o so...”
Mesmo ele não completando a frase, o proferido foi o bastante para Locke ficar em estado de choque momentâneo. Ouvira o nome ‘Sheila’ sem dúvidas, foi o adormecido Moses mesmo que esclareceu totalmente ela, repetindo o substantivo duas vezes! Só ela brincava daquilo... Ruby custou a acreditar que o quarto onde estava deitada havia sido palco de uma “diversão paralela” para Moses e outra menina, o custo fora mensurado através das lágrimas que rolaram em seu rosto. Antes que começasse a soluçar, ela resolveu sair do quarto silenciosamente e rumar para o banheiro. Misturando de uma forma surpreendente – até para ela – decepção com compaixão: Para Ruby e seus pais, o simples fato de não passar algumas noites dentro de casa era equivalente a trair os intocáveis valores familiares, imaculados desde a raiz da árvore genealógica. Todavia ser uma pessoa recatada demais na sociedade – mais especificamente a da região em que morava – não deixava de ser uma atitude ridícula. Ela levara isso ao relacionamento com Moses por muito tempo, e sabia que a turma de colegas do casal riam dela pelas costas. Por que puxou tanto ao seu pai? Sistemático e sempre hesitante, submetendo-se a doutrinas invisíveis e permitindo que a sua vida o levasse e o rebaixasse em tudo que fazia. Num estalo perante o espelho do lavabo, a filha do Sr. Locke descobrira que sua pele, exageradamente branca, era portadora daquele mal – uma doença hereditária. Bem, ela não freqüentava praias devido ao perigo de expor a falta de melanina; nunca ia às boates, graças ao imaginário violento e vulgar dos antros sociais noturnos, imposto por sua formação conservadora... Gostava apenas de um bom cinema. E gostava muito. Ruby montara uma teoria que tratava que o primeiro cinema do mundo devia ter sido construído por um casal de namorados. Se o primeiro filme da história rodado numa tela gigante era de romance ela não sabia, porém – independente do roteiro - tinha absoluta certeza que não existia lugar melhor, para dois apaixonados, do que o universo escuro das salas de exibição cinematográficas.
Ruby não queria acreditar que Moses estivesse “enjoado” dela e dos cinemas. Sheila seria diferente da monotonia, pois brincava... Ela não conhecia nenhuma Sheila e, mesmo se conhecesse, seu estado de covardia atual não permitiria que lembrasse... O fato que ela passou a encarar, a partir daquele dia, seria a necessidade de uma mudança em si mesma, sentia a permanência de sua adoração por Moses ainda depois dos murmúrios do rapaz sobre “a outra”, ou seja, o que Moses sentia por ela mantinha-se capaz de equilibrar todos os seus sentimentos pelo amado. Isso ficara comprovado no convite, vindo num buquê de violetas, que o garoto deu a ela na manhã passada. Fora uma elegante intimação para ela ir dormir acompanhada por ele na YL. Debiega continuava claramente interessado em namorá-la. Sim, a noite que tivera tinha o valor de um pedido de perdão! A receita do amor vinha ganhando cada vez mais nitidez para Ruby agora. Mas... Amor?
Repensando sozinha a sua relação com Moses enquanto vestia-se (não iria conseguir mais pegar no sono), a moça viu o Sol de domingo levantando-se e resolveu sair para espairecer. As estradas chegam ao ponto de secção na vida humana mais cedo ou mais tarde e a garota julgou que uma mudança de hábitos a faria muito bem. Ela lembrou - com vergonha – que nunca disse ‘eu te amo’ à Moses de maneira espontânea ou mesmo aleatória em três anos de namoro. Obviamente não seria bom falar uma frase tão impactante como esta nos primeiros meses de relação, mas dizer somente após em trocas de presentes esporádicas (Natal, páscoa e dia dos namorados) ao longo de quase quarenta meses não ficava bom também. Em sua cabeça, já estava decidido: Iria adotar uma nova personalidade visando agradar Moses e, se fosse possível, o mundo que a rodeava. Ruby lembrou-se que trancara a porta da YL por fora quando saiu e resolveu regressar. Surpresa, ela achou Moses acordado logo que empurrou a “portinha” (a porta da casa era parte do acesso ao estabelecimento), o rapaz a olhou de maneira aliviada... Mas virou um inquisidor repentinamente:
- Aonde é que você foi? – pela imagem do rosto, Moses nem tinha ido escovar os dentes.
- Fui ver se a padaria já tinha sido aberta. Queria comprar os pães de queijo que você tanto gosta, amor... Para agradecer a noite fantástica de ontem. – Ruby deu uma aula de como ser sistemática no momento propício; Comemorou a dissimulação perfeita com um aperto e um beijo nas mãos do namorado sonolento.
- Amor... Puxa, hoje é domingo! Aguarde um pouco que às sete horas abre uma perto do parque. – Moses não agia de forma perspicaz, mas sentiu que temia sobre tal desculpa ser irreal.
- Ah, sim... Então irei lá depois! Vá se lavar, amor! Que tal irmos à praia depois de tomarmos café? – Sugeriu Ruby de primeira.
Sem perceber, ela acordou definitivamente a inativa desconfiança de Moses. Nem ao menos preparou uma defensiva para os questionamentos que vieram a seguir:
- Ei garota, o que você fez com a minha namorada?... Praia? Ruby... Nem da areia você gosta! O que está acontecendo? – Moses adotou uma face de preocupação, mas seu tom de voz não estava alto. Favorecendo a formulação da segunda rodada para respostas precisas de Ruby.
- O Sol acabou de sair, não irá fazer mal nenhum a mim um mergulho na Porcelina, amor. Dando essa volta no quarteirão, recordei-me que só fomos uma vez lá, com a turma, e ficamos menos de uma hora... Nem precisa dizer que culpa foi minha, não banalize a verdade. Quero compensar aquela falta a você agora. Aproveitar nossa inspiração enquanto ela não cessa... – caprichando na entonação e nos carinhos, ela esperou a abertura da boca de Moses para ouvir as conseqüências de suas letras:
- Sim, vou ao banheiro, e então, comemos um pão e vamos ficar lá... Um pouco. Hoje eu tenho que arrumar as prateleiras aqui da loja. Mas o nosso tempo junto tem que render, Ruby.
Ruby ficou feliz externamente. Internamente, ela estava eufórica. O tempo deles dois juntos tinha que render! Ela viu muito significado naquelas palavras de Moses e, se dependesse dela, o tempo jamais seria inimigo... De preferência, nem amigo. Toda sua euforia retraída não a impediu de continuar agindo racionalmente:
- Esqueci que eu não tenho protetor solar... Temos de passar no mercado antes de ir à Porcelina. – Ruby gritou a fim de que Moses pudesse ouví-la, o berro vindo do banheiro em seguida deu a entender que o jovem captara a mensagem.
Porcelina atendia melhor pelo termo “o litoral universal”. Ao longo de sua extensão, havia de tudo que as melhores praias do planeta possuíam em termos naturais: As ondas do mar mantinham uma regularidade incrível em matéria de altura; permitindo que os surfistas a adorassem, os coqueiros eram abundantes e probabilidade de se achar tatuis, tartarugas e peixes superava de longe as expectativas em relação aos caranguejos ou águas-vivas. Mesmo inclusa num eixo muito urbanizado, aquela praia exercia um poder e um fascínio muito grande aos olhos das pessoas. A sujeira cumulativa que todo o tal progresso acelerado trouxe à cidade não a prejudicava. Era o único patrimônio mundial que Ruby e Moses podiam alcançar a pé e ver “pessoalmente”.
Após tomar café, o casal saiu e procurou uma farmácia ou uma loja de conveniência aberta às seis e meia da manhã. E só encontraram o bronzeador num mercadinho numa das ruas de ligação a Porcelina – Ruby, sem conhecer profundamente a fragilidade de sua derme, comprou um de “fator 90” para garantir um bom escudo contra o ataque ultravioleta. A insolação significava o único perigo real que a Praia poderia oferecer – sim, nem a criminalidade ousava chegar perto da área de Porcelina. O folclore nacional dava àquele lugar histórias formidáveis e acabava aumentando sua aura misteriosa. Alheio ao ambiente no momento, Moses tratou de curtir o descanso com Ruby durante três horas. Quando notou que a densidade demográfica começara a crescer, na mesma medida dos raios solares, ele chamou sua amada e despediu-se do mar. O saudável clima externo harmonizou o romance entre os dois, apesar de uma parte cerebral de Moses trabalhar negativamente, pois o fato do comportamento de Ruby inverter-se de um dia para o outro não passaria despercebido nem pela pessoa mais insensível do mundo. Será que ela fez alguma coisa capaz de Moses ficar decepcionado, ou será que foi ele próprio que deixou de fazer algo importante para agradá-la, e Ruby, racionalmente, tenta torturá-lo às avessas para ele lembrar e sentir-se o pior ser que existe? Moses odiava particularmente o dom humano de “esquecer”; então, pela incerteza, ele resolveu botar os panos na mesa logo enquanto andavam até a Youkoloko:
- Ruby... Você está convencida realmente de que queria ir à Praia? Está sinceramente realizada agora que foi à Porcelina?
- Claro que sim. Meu amor, hoje eu acordei respirando os mesmos ares e absorvendo novas idéias. Não conheço homem melhor que você, portanto, quero fazer com que a nossa história dure anos e anos. E seria difícil manter esse objetivo na prática sendo a mesma Ruby todo o tempo.
Moses respondeu de forma muito eloqüente (“huuumm...”). Morria de vontade de soltar uma resposta à altura daquela notícia, mas não conseguiu durante um minuto. Ele nunca criticou Ruby por seu jeito de ser, adorava sua inteligência elegante, seu andar mais contido – em relação à maioria das meninas – e como falava pouco, mas muito bem. Cogitou rapidamente se devia construir novas idéias também, para os dois “pombinhos” evoluírem juntos, abortando a idéia no momento em que conseguiu achar a pergunta certa:
- Seu estilo natural é o que mais me fascina... Você me promete que irá me surpreender sem mudar a sua... Essência?
Todo o período verbal de Moses não perdeu impacto nenhum com o barulho do forte vento marítimo: Ele conseguiu trocar a expressão do rosto, preenchido por leves sardas, um pequenino nariz e grandes olhos verdes de Ruby elogiando à sua personalidade; e de quebra, seu questionamento veio fundado numa promessa. Todos os cálculos que a moça armara para conversar com Moses, naquele dia de domingo, caíram por terra. Ruby parou de andar e começara a chorar:
- Vo-Você nunca disse... Meu estilo é fa-fascinante... Obrigada, amor... Muito obrigada!... – Ela atirou-se em Moses, permitindo que ele quase caísse de costas na calçada – Não, eu não mudarei minha essência, eu prometo (beijos sem pontaria na cara do namorado), eu prometo!
Nada como palavras combinadas de uso poético para comover o sexo feminino! Moses, mesmo tendo um Q.I. considerável, notou que veio um lampejo intelectual a ele ao falar “fascina” ou “essência”, que não eram palavras corriqueiras para ele. Mas no espaço de tempo em que pensara nisso (enquanto se recompunha do abraço impulsivo de Ruby), quis acreditar que os sintagmas surgiram graças à interação de longa data com uma menina inteligente – até acima da média, segundo os boletins escolares. Até porque ele achou que o motivo responsável por sua consciência vangloriar-se, com a investida afetuosa de Ruby, era justamente porque conseguira desestabilizar – por um momento inesquecível - aquela mente tão interessante.
- Então que assim seja. Amor... – Moses podia sentir-se vitorioso, mas claro que ficara emocionado quase tanto quanto Ruby – Nossos laços nunca irão se quebrar. Acabamos de dar uns bons nós nele.
- Não mude também a sua essência querido. Mesmo essas suas analogias não tendo sentido, eu as adoro! – E Ruby desatou a rir junto com o amado, de braços dados, dirigindo-se o para o que seria um domingo atarefado dentro de uma loja cheia de peixinhos dourados, pássaros e chinchilas. Um final peculiar para um conto de fadas tradicional, mas ideal para encerrar um princípio de pesadelo horrível que horas atrás a perturbara – um pesadelo batizado de ‘Sheila’.
Duas semanas depois, foi a vez de Moses passar a noite na casa de Ruby, apesar da grande distância entre os lares dos dois: O bairro Justine, onde localizava-se a Youkoloko, era geograficamente muito afastado de Medellia – região suburbana da cidade – conhecida como “bairro cinza” pelos forasteiros, já que havia sido um bairro de concentração industrial importante para a cidade em décadas passadas e que, naqueles tempos, só possuía o céu poluído e as casas quebradas dos ex-funcionários de tais fábricas inativas. “Maldito seja o progresso tecnológico!” e “Malditas são as barganhas capitalistas!” eram as frases favoritas dos pobres vovôs que ali viviam; gastando o seu tempo contando sua história de vida aos netinhos. Sorte a de Ruby – e de Moses também – que sua casa não ficava próxima ao Morro Blank, local que abrigava o crescimento de uma favela: O tipo de comunidade identificada, já naquela época, ameaçadora igual a um cisto de câncer... Para a sociedade. A diferença é que a culpa de tal perigo se desenvolver não era dos “pacientes”, e sim de quem fazia (ou poderia fazer) o papel de médico.
Antes de Ruby cair de verdade no sono, o lado esquerdo da sua cama já estava roncando. Quando ela virou seu corpo para acariciar e adormecer abraçada ao seu namorado, o pesadelo retornou, invadindo seus maduros ouvidos:
“Sheila... Quero brincar disso de novo... É minha vez! vamos, Sheila... Isso é tão legal...” – Moses falara num murmúrio tão inteligível que até os pais de Ruby, se estivessem em casa, estariam sujeitos a escutá-lo uma vez perto da porta do quarto da filha – O casal tinha ido a um evento para funcionários da empresa onde o pai de Ruby trabalhava. Só voltavam no dia seguinte.
A verdade de Moses só aparecia nos sonhos? Não era possível... Ruby não se lembrava de uma vez ter ficado mais decepcionada do que naquele momento. Como assim “é tão legal...”?! Como assim “brincar disso de novo...”?! A vontade que a adolescente sentiu de acordar Moses com um soco no peito para condená-lo, repetindo as entorpecidas palavras dele, nasceu tão forte que ela achou impressionante o fato do namorado continuar dormindo calmamente... Preso em seu mundo de sonhos (brincadeiras?) enquanto uma fúria flamejante emanava de Ruby e talvez esquentasse o colchão em uns 50 graus centígrados. Antes das lágrimas mancharem o seu rosto albino, ela retirou-se do leito e foi à cozinha. Ela queria comer, mastigar alguma coisa... Queria cravar seus dentes em algo palatável a fim de não cogitar morder o pescoço de Moses e acabar diretamente com seu pesadelo particular; tentar acabar com a tal Sheila indiretamente... Quem diabos ela era? Pensou em telefonar a um dos amigos – os mais próximos do rapaz - justamente para perguntar o número de Sheila porque tinha que comentar um assunto com ela (bastava deixar claro ao amigo que Moses já havia apresentado uma à outra e que elas tinham um selecionado interesse em comum, e Ruby iria falar para Sheila algo muito interessante a respeito de tal gosto partilhado). Porém já passava de uma hora da manhã e até Ruby lembrar-se de uma preferência sua para usar – sorvete de flocos, violetas, mariposas... Qualquer uma – tornar-se-ia uma noite cansativa àquela mente incessantemente calculista. Ela fez o máximo para relaxar e parar com o imaginário de uma menina bonita junto a seu amado pulando no quarto, e... Brincando. “Se Moses ainda sente algo especial por mim... Como ele pode ser tão hipócrita?! E logo comigo!” – Ruby gritava mentalmente, ficou em desespero sentada no sofá da sala. Fora traída pela pessoa que mais gostava e dependeu do inconsciente dela para saber de tal verdade. Moses e suas devidas confissões provavelmente não viriam até Ruby por livre e espontânea vontade nunca; assim, “de que adianta mudar? Não agrado mais o meu a... Esse moleque! De que adiantaria manter a minha essência se ele deseja outra? Imbecil!” – síntese do turbilhão de raciocínios da jovem naquele instante. Apesar do incontável número de lágrimas que já tinha derramado em questão de segundos, ela arranjou forças para esfregar o braço nelas e concluir algo daquilo tudo, inspirado numa outra decisão de passado recente: “Não agrado mais a Moses... Mas posso agradar ao resto do mundo.”
Opa! Moses terminou o tratamento da cadela Donna. Ele pode considerar-se um homem semi-quase-bem-sucedido nos negócios, porque se tivesse um funcionário diferente de Aizaiah, a YL já poderia ter fechado as portas: O assistente sabe de cor todos os apetrechos médicos precisos para examinar cachorros de qualquer porte, e ainda teve a maior paciência de segurar uma poodlezinha irrequieta durante dez minutos - sendo que Moses não o paga para os serviços de aspecto veterinário. Codi não cansou de mostrar seu espírito prestativo, até ofereceu-se para dar adestramento gratuito à cachorrinha da senhora Mill quando terminasse o curso de aprendizado.
- É sério, querido Aizaiah? Você ensinaria minha Donninha a ficar mais calminha? Eu não faço idéia da melhor forma de agradecer! – A Senhora Mill guarda um amor tão cego pela cadelinha que atribuiu intensidade a uma característica inexistente em Donna... A quadrúpede não era calma, não mesmo.
- Bem, ainda devemos esperar o fim das minhas aulas de adestrador... Mas tenha certeza, madame Mill, que quando eu tirar o diploma do curso, a senhora será a primeira a saber.
Moses continuou a observar e admirar a facilidade com que Aizaiah lida, sem ficar incomodado, com os caprichos da senhora e seu bichinho todo aquele tempo. O trabalho constantemente os deixava exaustos, contudo com um auxiliar tão bom quanto Codi, era viável manter o ritmo sem reclamações. Quem mais sabia que o herdeiro Debiega sempre ficava mais cabisbaixo em determinada época do ano? Que, aliás, era a época em que eles estavam vivendo: Um ameno e recém-renascido junho.
- Ei, Moses... Está me ouvindo? Eu falei para você sobre o jantar que minha família irá fazer? – perguntou Aizaiah no momento que Moses despediu-se da fiel cliente, já fora do estabelecimento, com acenos e sorrisos amarelos.
- Jantar o quê? Não rapaz... Não disse nada, acredite... Um jantar com sua família? – Moses não iria esquecer nenhuma palavra relevante que saísse da boca de Aizaiah jamais, até porque o menino nunca falava algo referente à sua família ou sua casa; Quando Moses não desabafava, só ouvia a voz do interlocutor por algum tópico sobre o costumeiro serviço.
- Sabe... Minha avó está visitando a cidade, ela veio do Norte e retornará para lá dentro de dois dias. Ela gostaria que fizéssemos um jantar familiar tradicional, mas desejou também que pudéssemos convidar os... Semelhantes mais chegados. Vale lembrar que você e meu pai não se vêem há um tempo, não é? – Por mais que essa questão tivesse um caráter mais íntimo, Aizaiah falou mantendo seus olhos focados nas prateleiras de alpiste e de brinquedos de uso felino.
- Bem, isso já não é comigo... Ele sabe onde me encontrar caso quisesse matar a saudade, hehe... – O jeito que Moses desferiu esse comentário seria o suficiente para terminar a conversa. As piadas já não eram o seu forte e quis rir junto com alguém, mais novo, que levava as coisas mais a sério do que ele – quando na mesma idade. Codi se saiu bem; fingiu que não ouviu:
- Olha, o jantar será na minha casa mesmo, amanhã, às dez da noite. Você é a única pessoa quem eu convidei. Com licença... – Aizaiah dirigiu-se até a porta à esquerda da abertura que dá acesso às escadas da residência de Moses, possivelmente a fim de pegar algo que esqueceu na mesa de exames dos animais (a “Sala de Atendimento Médico”).
O administrador da YL não demorou a compreender o que Codi deixara no ar: Dizendo que Moses era a única pessoa a ser convidada, o garoto disse-lhe a palavra mágica - ”por favor” - da maneira sutil mais persuasiva que se pode imaginar. Debiega balançou a cabeça bem lentamente e subiu os degraus até o seu quarto. Agora ele teria que escolher qual seria a prioridade de sua atípica sexta à noite: Ou ir, por pressão “amigável”, ao evento anual na praça ou jantar com a avó alheia. Ele custou a acreditar que Aizaiah, do zero, veio convidá-lo para uma reunião – a princípio – de família e amigos próximos. Por isso ficou um tanto sensibilizado; no mínimo mais sensível do que o costume... Não é nem porque o mês de junho representa o tempo gregoriano nesse momento; Moses sentia – melhor, temia – que sua vida atual estivesse gravemente incompleta, numa mistura de desorientação com arrependimento coberto com uma camada de fumaça, bem densa, que proibia que identificasse o(s) problema(s) nitidamente, em sua mente atolada em trabalho e estudos. O universitário iria morrer sem entender como as ditas matérias biomédicas tornavam-se mais complicadas a cada prova; ao compasso que toda a arte curativa, ou dos cuidados aos outros seres vivos, o seu falecido pai dominava com denodo invejável e sem documento algum que provasse toda a sua habilidade! Outra vez usando as palavras hieroglíficas de Derek Debiega “o que seu coração aprende não esquece, e o que sua mente esquece, destrói”.
Visto que parou defronte ao retrato da família mais uma vez, Moses afirmou, consigo mesmo, que em certo ponto de sua jornada teria que parar um pouco para decifrar as letras mais aéreas de seu pai. Mesmo ciente que, quando tal quebra-cabeça fosse desfeito, não permaneceria tão atento ao cheiro nem ao sabor dos ensinamentos dele provenientes. A foto à esquerda da lembrança é uma interrogação; Moses odeia olhá-la, mas a última coisa do mundo que ele faria era tirá-la daquela posição. Entretanto chocou, por um maldito impulso involuntário do pescoço, suas córneas na maior (e mais vistosa) imagem do corredor: Era a praia de Porcelina cobrindo o horizonte iluminado pelo Sol e por um rosto feminino jovial e sorridente, realçando uma paisagem perfeita de cartão postal caso a garotinha não tivesse uma pele tão clara (na contramão do padrão de beleza predominante no país). A felicidade contida no semblante da moça armada com um palito de picolé na mão esquerda - e com uma direita feita para merchandising, pois a postura de modelo apresentando a paisagem litorânea ficara brilhante – não inspirava nenhum sorriso recíproco na face de Moses havia muito tempo. Não era culpa da praia, nem das montanhas ao fundo, do picolé e nem da garota. A moldura negra que prendia aquele “pôster” na parede era o que denunciava o motivo da lágrima solitária do rapaz na contemplação-relâmpago do retrato; tudo era culpa dos dizeres impressos numa pequenina forma oval em relevo situada abaixo da tela. Dizeres? Não... Melhor definindo, datas marcantes:
RUBY CYGNUS LOCKE
NEVE DE SORVETE
Eis um trecho da última conversa de Moses, ao telefone, com um amigo do colégio:
- O que é isso, Moses! A festa do Padre Rozendo rola uma vez a cada quatro anos! A quantidade de pessoas que vão para lá é imensa! Vai ter muita mulher, garoto! É para matar a fome, a sede e tudo que nos incomoda em um dia só!
- Esquece cara... Eu preciso estudar para a prova. Além disso, ainda vou conferir se não esqueci nenhum exercício da professora Cassandra. Admito que não suporto a matéria dela...
- Não muda de assunto, irmão! Até eu sei que ninguém lá da sala gosta de nanobiologia, mas nem por isso a faculdade impede que você vá se divertir! Deixe de encarar a vida tão a sério, vamos zoar... Aproveitar a vida!... Opa...
- Isso foi uma indireta, não foi?
- Ih, Desc... Foi um... Não queria dizer algo assim... Calma.
- Não vou ofender você, Yosef. Pelo seu tom de voz percebo que você não disse por querer. E quer saber? Mesmo a frase tendo intenção, não poderia falar nada, certo?
- Moses, Moses... Qualquer coisa vá para lá amanhã, eu tenho que ir dormir logo porque a conta do telefone aqui em casa é... Bem, eu e a turma vamos ficar no bar a direita da Praça Rozendo. E depois, vamos para a praça mesmo... Para a guerra. Tudo bem? Boa noite cara!
Moses, Moses... Provavelmente o universitário mais cabisbaixo da face da Terra. Não por ter (muitos) problemas com dinheiro – com uma loja Pet Shop (ou, segundo seus planos futuros, um centro de tratamento animal) herdada do seu pai - ele é o único empreendedor de vinte anos que conhecia – e muito menos problemas envolvendo mulheres, pois era o menino mais “mirado” pelas garotas do curso de veterinária. Infelizmente, nem ele consegue explicar o que falta em sua vida a fim de não viver sentindo-se tão melancólico. Devido às respostas negativas quando o convidavam para sair e badalar no fim de semana, seus colegas na universidade costumavam dizer sempre, em tom de brincadeira, que Moses tinha “jeito de velho” – Mas é claro que os jovens já não estão mais com idade para brincar com essas palavras... Moses tem um jeito diferente sim, movimenta-se do mesmo jeito que o seu falecido pai, e se possuía seus colegas atuais era porque nem ele, nem eles, nunca se consideraram amigos desde o começo. O rapaz abria um leque de argumentos, para falar desde economia nacional até sobre amizade, e não conseguia explicar-se bem nem com a ajuda do vento. Além de jeito de velho, Moses ainda conta com a dificuldade de se expressar... Como se a complexidade para abrir um ratinho cobaia e checar quantas artérias estavam ruins (atividade comum em suas aulas) fosse nada perto da complexidade de revelar a alguém seus pensamentos e opiniões sobre a vida – ou, no caso desse jovem, a falta dela.
- É mesmo, o Aizaiah já foi embora... Acho que nós dois esquecemos a comida do Quack, vou voltar lá embaixo. – falou sozinho Moses, referindo-se, respectivamente, ao seu único empregado e a sua calopsita de estimação.
Aizaiah Codi não é só o único funcionário do Pet Shop Youkoloko como também acumula a função de melhor amigo de Moses. Bom, Codi tem três anos a menos que o seu chefe e, sendo assim, aprimorava a sua capacidade de escutar, compreender e opinar sobre os conflitos e dúvidas inerentes ao fim da adolescência, que ainda perturbam o ‘senhor’ Moses.
Youkoloko - ou YL para os “bons entendedores” - nas palavras do pai de Moses, Derek Debiega, é “o legado do presente para as conquistas do futuro!” – Moses lembrou-se vagamente da frase enquanto descia às escadas em direção ao térreo, pois quando se virava para a esquerda para tocar o corrimão, via uma fotografia antiga dele com seu pai, sua mãe, sua irmã e a mascote Eden – a calopsita mãe de Quack. Dentre os seres da memória, a ave, mesmo sem sorrir, ironicamente passava mais alegria que o restante do clã Debiega. Pelo que Moses sabia, a sua irmã – Sheila - só tinha ligação sanguínea com ele por parte de mãe. O casal Derek e Ava não possuía a melhor relação conjugal do mundo após a concepção dos rebentos. Contudo, Moses apenas gostava de recordar a ótima relação que tinha com Sheila; até Ava pedir o divórcio e levar a garota para outra região do país... Isso já havia alguns anos, uma década talvez?... Moses não parou para calcular o tempo que passou, teve medo de que também lembrasse, como um bônus, de algum conflito típico fraternal; intenso o suficiente a fim de deixar alguma seqüela, negativa, nos sentimentos de Sheila em relação a ele... E voltou a focar em que ração dar a Quack e aos passarinhos “comerciáveis”.
- Pai, como o senhor pediu a mamãe em namoro?
- Eu não pedi, moleque! Esse foi uma parte do propósito!
- Propósito? Como assim?
- Só vou dizer uma coisa a você, filho... Eu não conheço todo o mundo, e todo o mundo me assustava. Não por medo do desconhecido, de criminosos ou da morte, nada disso... Mas pela impotência de não conseguir superá-lo. Só isso que você deve saber, por enquanto.
- Mas por que tanto mistério, pai?
- Se eu falar como conquistei Ava, você talvez não tenha o mesmo êxito quando decidir completar a sua vida... Esse macete do amor você irá descobrir sozinho, Mos...
- EI!
Quase toda semana, o seu cérebro recorria àquela lembrança, encaixando-a aos sonhos de Moses; mais uma vez, QUASE ele avançava mais naquele diálogo que tivera com o seu velho, em uma última tarde de inverno, na Praça Rozendo. Sabia apenas que era uma última tarde de algum inverno; não recordava com exatidão o ano, mas que foi num tempo próximo do rompimento de sua família, foi... “Todo mundo? Será que esse termo tem duplo sentido? Mesmo se não tiver, será que o pai quis fazer charada? Macete? Ele não era tão misterioso depois que a mãe partiu, por que será?” – Moses fazia a si mesmo essas perguntas toda vez que o sonho o visitava. Sonhos realistas são como parentes distantes no natal: Na chegada, ambas as partes se estranham e estão sujeitas a esquecerem uma da outra após a entrega do presente, mas quando há histórias para contar, resolvem aparecer no ano novo, na páscoa... Mas o tempo encontra-se num vazio mês de junho!
- Moses! Moses! Já cheguei, valeu?
Aquela voz alta só podia ser de Aizaiah. Por mais que o adolescente não fosse trabalhar cedo, por causa do colégio, ele tem em seu poder as chaves do cadeado, caso acontecesse qualquer fato incomum (se Moses não estivesse presente no estabelecimento, a casa do jovem empregado ficava perto dali; e esporadicamente, as aulas extracurriculares da faculdade eram necessárias para Moses). Moses tranqüilizou-se aos poucos ainda na cama, devido ao sonho; após uns segundos, levantou e aprontou-se para ir à Universidade. Antes de sair, deu algumas instruções a Aizaiah, fazendo o máximo de esforço para não perguntar por que o menino bateu seu ponto no cantar do galo, às sete horas da manhã - se ele “pegava” às duas da tarde.
- Pode deixar comigo, Moses. Eu sei onde estão as vacinas e a ração especial, sim.
- Legal, então... Daqui a pouco estou aí, até mais.
Seguindo a rotina, é Moses mesmo o responsável por abrir a loja em algum minuto entre onze horas e meio-dia, raramente o expediente começava de outra maneira. “Talvez Aizaiah não foi à escola por causa do conselho de classe... É, é isso sim”. Uma política que Moses adota desde que conhecera o jovem – fato datado de tempos atrás, pois Derek e o pai de Codi construíram uma grande amizade – Foi batizada pelo próprio de “muralha da China”: A vida dele anda e a do seu subalterno também; quando ele visse problemas que sente ânsia de cuspir, bastaria abrir a boca em direção ao “muro” (Aizaiah), para aliviar suas queixas. Independente se Codi importa-se ou não com a vida de Moses, sempre ele diz uma letrinha sobre o que acha ou deixa de achar. Mas em compensação, atrás daquele muro não aparentava ter nenhum problema – pelo menos não para o patrão. Nunca Moses julgou que Aizaiah marcou presença no serviço de cara amarrada, triste ou com vontade de falar algo desagradável. Em miúdos: Se, superficialmente, está indo tudo bem com a “China”, que continue as nossas relações padronizadas, seguindo a divisão internacional do trabalho. Porque até acontecer uma revolução...
- E aí, Moses! Veio na hora certa! – Incrível a facilidade que Win possuía de abrir a boca e fazer com que metade do campus virasse a atenção para o seu discurso. O - auto-intitulado - melhor amigo de Moses inoportunamente aproximou-se do rapaz piscando e executando movimentos um tanto dissimulados. Parece ensaiar constantemente um novo vexame.
- Fala, Win... Preciso perguntar por que está girando a cabeça e fazendo caretas?
- Irmão (falou Win, colocando o braço no ombro esquerdo de Moses)... Tenho uma bomba para contar para você... O Furacão Sabrina vai à festa da Praça!
- Ué, o que isso tem a ver comigo? – Nem é preciso dizer que Moses quer terminar a conversa o quanto antes e entrar na sala.
- O quê? Irmãozinho, a Sabrina sempre esteve a fim de você! Não esqueça que ela é a Miss da faculdade! Amanhã pode ser o melhor dia da sua vida! – Com toda a alegria que Win disse aquelas palavras, deixou transparecer que pode matar um urso para trocar de corpo com Moses.
O jovem administrador veterinário olhava para o céu com uma postura pensativa: Indubitamente Sabrina era muito bonita mesmo. Cabelos cacheados impecáveis, olhos da cor do mel (Moses definiu melhor em sua cabeça: “Cor do favo da colméia!”), corpo de modelo numa estatura ideal, o nariz “certinho”... O que raios será que ela viu nele para “estar a fim”? Ele tinha um rosto gordo, corpo desprovido de porte atlético (porém não era magro), olhos castanho-escuros e cabelos “lambidos” com uma franja dupla esquisita... Moses alega que os fios de cabelo teimam em ficar cobrindo sua testa nas laterais, e não adiantava cortá-los. Bem, as meninas de qualquer jeito gostavam. E o mais interessante – concluiu Debiega mentalmente – é o fato que Sabrina não estava no curso de veterinária... Ela almeja tornar-se uma nutricionista. Depois que voltou a si, Moses olhou Win em toda a sua extensão. Sim, o sujeito falastrão é meio roliço, com mãos e pernas curtas; suas roupas coladas no corpo não o ajudavam virtualmente em nada; A bela paisagem arborizada do campus de ciências biomédicas da Universidade Pindorama permite que os estudantes ampliem o campo de visão e Win acaba sendo um aluno bem notável, no sentido literal do termo. Moses tratou de andar mais rápido em direção a sua turma, usando a desculpa de precisar falar com Yosef na biblioteca. Assim deixando tal melhor amigo para trás.
Ao decorrer das aulas, os olhares corriqueiros e as conversas paralelas ao discurso explicativo dos professores não mudaram o seu curso em nenhum momento. Yosef encontrou Moses no momento em que ele adentrou na sala. O colega sentou-se ao seu lado e tratou de ratificar o que Win comunicara antes: Sabrina estava mesmo a fim. E mais, o assunto já tinha se libertado do círculo de boatos e residia na boca e nos ouvidos de, pelo menos, metade das garotas da Universidade Pindorama inteira! Depois dos beijinhos de despedida nas garotas da turma (10 mulheres para seis homens no sexto período do curso de veterinária) e de cumprimentar Yosef e Win, Moses caminha para casa munido de idéias sobre como estragar o previsível “encontro” entre ele e o Furacão Sabrina. Ao contrário da ala masculina que estudava no Pindorama, ele nunca havia enxergado a aspirante à nutricionista com olhos de coelho, muito menos trocado três frases diretamente com ela (os dois já foram apresentados em algum bate-papo num passado recente, mas Moses só correspondeu com um “beleza” uma piada da gata sobre suas roupas). E o mais chato é o fato que Sabrina com certeza não iria gostar, para dizer o mínimo, de uma rejeição do sexo oposto em um evento amplamente divulgado e popular, como é o caso da iminente festa tradicional do Padre Rozendo, na Praça que levava o nome célebre: Jubileu Rozendo foi um religioso famoso por ter sido grande ativista social no desenvolvimento da cidade.
Já que faltava ainda um pouquinho mais de 24 horas para a festa, Moses optou por desligar-se do tema enquanto se dedicava ao trabalho. Quinta-feira é dia da habitual visita da senhora Mill com a sua cadelinha poodle Donna às 14 horas, visando fazer um check-up do animal e criando as oportunidades para o jovem exercitar, cada vez mais, suas habilidades de medicina veterinária: Ele não deixa de gostar bastante e se possuí algum sonho em sua vida, ele traduz-se na transformação do Estabelecimento Youkoloko no Centro de Tratamento Animal Mellonyouko depois da sua graduação. O termo “mellon” seria uma homenagem à...
Bom, uma vez que Moses não faz nada de especial durante o exame em Donna, está na hora de explicar os acidentes do passado que fizeram Moses tornar-se a espécie de “acidente social” para os seus colegas no presente... Amigo leitor, não envolve dinheiro! Mas envolve uma mulher.
Ruby Locke foi a pessoa mais importante relacionada à adolescência de Moses. Essa moça e ele conheceram-se aos 11 anos de idade, num memorável primeiro ano do ginásio no colégio Rebanho. Porém, logicamente, custou um pouco de tempo para iniciarem um relacionamento firme – Não havia muita desarmonia entre eles, em geral, as “crianças grandes” da turma sempre foram unidas – ou para terminarem de vez com a infância: Ambos aos 13 anos decidiram namorar, concluindo a soma dos fatores ‘vontade interna’ e ‘pressão externa’, e durante três anos tudo o que eles passaram fora fantástico... Até em que certo sábado à noite, dormindo com Moses no quarto dele, Ruby ouviu as seguintes palavras soltas por seu namorado perdido no abismo do sono: “Sheila... Sheila... Só você consegue brincar disso... E tome cuidado com o so...”
Mesmo ele não completando a frase, o proferido foi o bastante para Locke ficar em estado de choque momentâneo. Ouvira o nome ‘Sheila’ sem dúvidas, foi o adormecido Moses mesmo que esclareceu totalmente ela, repetindo o substantivo duas vezes! Só ela brincava daquilo... Ruby custou a acreditar que o quarto onde estava deitada havia sido palco de uma “diversão paralela” para Moses e outra menina, o custo fora mensurado através das lágrimas que rolaram em seu rosto. Antes que começasse a soluçar, ela resolveu sair do quarto silenciosamente e rumar para o banheiro. Misturando de uma forma surpreendente – até para ela – decepção com compaixão: Para Ruby e seus pais, o simples fato de não passar algumas noites dentro de casa era equivalente a trair os intocáveis valores familiares, imaculados desde a raiz da árvore genealógica. Todavia ser uma pessoa recatada demais na sociedade – mais especificamente a da região em que morava – não deixava de ser uma atitude ridícula. Ela levara isso ao relacionamento com Moses por muito tempo, e sabia que a turma de colegas do casal riam dela pelas costas. Por que puxou tanto ao seu pai? Sistemático e sempre hesitante, submetendo-se a doutrinas invisíveis e permitindo que a sua vida o levasse e o rebaixasse em tudo que fazia. Num estalo perante o espelho do lavabo, a filha do Sr. Locke descobrira que sua pele, exageradamente branca, era portadora daquele mal – uma doença hereditária. Bem, ela não freqüentava praias devido ao perigo de expor a falta de melanina; nunca ia às boates, graças ao imaginário violento e vulgar dos antros sociais noturnos, imposto por sua formação conservadora... Gostava apenas de um bom cinema. E gostava muito. Ruby montara uma teoria que tratava que o primeiro cinema do mundo devia ter sido construído por um casal de namorados. Se o primeiro filme da história rodado numa tela gigante era de romance ela não sabia, porém – independente do roteiro - tinha absoluta certeza que não existia lugar melhor, para dois apaixonados, do que o universo escuro das salas de exibição cinematográficas.
Ruby não queria acreditar que Moses estivesse “enjoado” dela e dos cinemas. Sheila seria diferente da monotonia, pois brincava... Ela não conhecia nenhuma Sheila e, mesmo se conhecesse, seu estado de covardia atual não permitiria que lembrasse... O fato que ela passou a encarar, a partir daquele dia, seria a necessidade de uma mudança em si mesma, sentia a permanência de sua adoração por Moses ainda depois dos murmúrios do rapaz sobre “a outra”, ou seja, o que Moses sentia por ela mantinha-se capaz de equilibrar todos os seus sentimentos pelo amado. Isso ficara comprovado no convite, vindo num buquê de violetas, que o garoto deu a ela na manhã passada. Fora uma elegante intimação para ela ir dormir acompanhada por ele na YL. Debiega continuava claramente interessado em namorá-la. Sim, a noite que tivera tinha o valor de um pedido de perdão! A receita do amor vinha ganhando cada vez mais nitidez para Ruby agora. Mas... Amor?
Repensando sozinha a sua relação com Moses enquanto vestia-se (não iria conseguir mais pegar no sono), a moça viu o Sol de domingo levantando-se e resolveu sair para espairecer. As estradas chegam ao ponto de secção na vida humana mais cedo ou mais tarde e a garota julgou que uma mudança de hábitos a faria muito bem. Ela lembrou - com vergonha – que nunca disse ‘eu te amo’ à Moses de maneira espontânea ou mesmo aleatória em três anos de namoro. Obviamente não seria bom falar uma frase tão impactante como esta nos primeiros meses de relação, mas dizer somente após em trocas de presentes esporádicas (Natal, páscoa e dia dos namorados) ao longo de quase quarenta meses não ficava bom também. Em sua cabeça, já estava decidido: Iria adotar uma nova personalidade visando agradar Moses e, se fosse possível, o mundo que a rodeava. Ruby lembrou-se que trancara a porta da YL por fora quando saiu e resolveu regressar. Surpresa, ela achou Moses acordado logo que empurrou a “portinha” (a porta da casa era parte do acesso ao estabelecimento), o rapaz a olhou de maneira aliviada... Mas virou um inquisidor repentinamente:
- Aonde é que você foi? – pela imagem do rosto, Moses nem tinha ido escovar os dentes.
- Fui ver se a padaria já tinha sido aberta. Queria comprar os pães de queijo que você tanto gosta, amor... Para agradecer a noite fantástica de ontem. – Ruby deu uma aula de como ser sistemática no momento propício; Comemorou a dissimulação perfeita com um aperto e um beijo nas mãos do namorado sonolento.
- Amor... Puxa, hoje é domingo! Aguarde um pouco que às sete horas abre uma perto do parque. – Moses não agia de forma perspicaz, mas sentiu que temia sobre tal desculpa ser irreal.
- Ah, sim... Então irei lá depois! Vá se lavar, amor! Que tal irmos à praia depois de tomarmos café? – Sugeriu Ruby de primeira.
Sem perceber, ela acordou definitivamente a inativa desconfiança de Moses. Nem ao menos preparou uma defensiva para os questionamentos que vieram a seguir:
- Ei garota, o que você fez com a minha namorada?... Praia? Ruby... Nem da areia você gosta! O que está acontecendo? – Moses adotou uma face de preocupação, mas seu tom de voz não estava alto. Favorecendo a formulação da segunda rodada para respostas precisas de Ruby.
- O Sol acabou de sair, não irá fazer mal nenhum a mim um mergulho na Porcelina, amor. Dando essa volta no quarteirão, recordei-me que só fomos uma vez lá, com a turma, e ficamos menos de uma hora... Nem precisa dizer que culpa foi minha, não banalize a verdade. Quero compensar aquela falta a você agora. Aproveitar nossa inspiração enquanto ela não cessa... – caprichando na entonação e nos carinhos, ela esperou a abertura da boca de Moses para ouvir as conseqüências de suas letras:
- Sim, vou ao banheiro, e então, comemos um pão e vamos ficar lá... Um pouco. Hoje eu tenho que arrumar as prateleiras aqui da loja. Mas o nosso tempo junto tem que render, Ruby.
Ruby ficou feliz externamente. Internamente, ela estava eufórica. O tempo deles dois juntos tinha que render! Ela viu muito significado naquelas palavras de Moses e, se dependesse dela, o tempo jamais seria inimigo... De preferência, nem amigo. Toda sua euforia retraída não a impediu de continuar agindo racionalmente:
- Esqueci que eu não tenho protetor solar... Temos de passar no mercado antes de ir à Porcelina. – Ruby gritou a fim de que Moses pudesse ouví-la, o berro vindo do banheiro em seguida deu a entender que o jovem captara a mensagem.
Porcelina atendia melhor pelo termo “o litoral universal”. Ao longo de sua extensão, havia de tudo que as melhores praias do planeta possuíam em termos naturais: As ondas do mar mantinham uma regularidade incrível em matéria de altura; permitindo que os surfistas a adorassem, os coqueiros eram abundantes e probabilidade de se achar tatuis, tartarugas e peixes superava de longe as expectativas em relação aos caranguejos ou águas-vivas. Mesmo inclusa num eixo muito urbanizado, aquela praia exercia um poder e um fascínio muito grande aos olhos das pessoas. A sujeira cumulativa que todo o tal progresso acelerado trouxe à cidade não a prejudicava. Era o único patrimônio mundial que Ruby e Moses podiam alcançar a pé e ver “pessoalmente”.
Após tomar café, o casal saiu e procurou uma farmácia ou uma loja de conveniência aberta às seis e meia da manhã. E só encontraram o bronzeador num mercadinho numa das ruas de ligação a Porcelina – Ruby, sem conhecer profundamente a fragilidade de sua derme, comprou um de “fator 90” para garantir um bom escudo contra o ataque ultravioleta. A insolação significava o único perigo real que a Praia poderia oferecer – sim, nem a criminalidade ousava chegar perto da área de Porcelina. O folclore nacional dava àquele lugar histórias formidáveis e acabava aumentando sua aura misteriosa. Alheio ao ambiente no momento, Moses tratou de curtir o descanso com Ruby durante três horas. Quando notou que a densidade demográfica começara a crescer, na mesma medida dos raios solares, ele chamou sua amada e despediu-se do mar. O saudável clima externo harmonizou o romance entre os dois, apesar de uma parte cerebral de Moses trabalhar negativamente, pois o fato do comportamento de Ruby inverter-se de um dia para o outro não passaria despercebido nem pela pessoa mais insensível do mundo. Será que ela fez alguma coisa capaz de Moses ficar decepcionado, ou será que foi ele próprio que deixou de fazer algo importante para agradá-la, e Ruby, racionalmente, tenta torturá-lo às avessas para ele lembrar e sentir-se o pior ser que existe? Moses odiava particularmente o dom humano de “esquecer”; então, pela incerteza, ele resolveu botar os panos na mesa logo enquanto andavam até a Youkoloko:
- Ruby... Você está convencida realmente de que queria ir à Praia? Está sinceramente realizada agora que foi à Porcelina?
- Claro que sim. Meu amor, hoje eu acordei respirando os mesmos ares e absorvendo novas idéias. Não conheço homem melhor que você, portanto, quero fazer com que a nossa história dure anos e anos. E seria difícil manter esse objetivo na prática sendo a mesma Ruby todo o tempo.
Moses respondeu de forma muito eloqüente (“huuumm...”). Morria de vontade de soltar uma resposta à altura daquela notícia, mas não conseguiu durante um minuto. Ele nunca criticou Ruby por seu jeito de ser, adorava sua inteligência elegante, seu andar mais contido – em relação à maioria das meninas – e como falava pouco, mas muito bem. Cogitou rapidamente se devia construir novas idéias também, para os dois “pombinhos” evoluírem juntos, abortando a idéia no momento em que conseguiu achar a pergunta certa:
- Seu estilo natural é o que mais me fascina... Você me promete que irá me surpreender sem mudar a sua... Essência?
Todo o período verbal de Moses não perdeu impacto nenhum com o barulho do forte vento marítimo: Ele conseguiu trocar a expressão do rosto, preenchido por leves sardas, um pequenino nariz e grandes olhos verdes de Ruby elogiando à sua personalidade; e de quebra, seu questionamento veio fundado numa promessa. Todos os cálculos que a moça armara para conversar com Moses, naquele dia de domingo, caíram por terra. Ruby parou de andar e começara a chorar:
- Vo-Você nunca disse... Meu estilo é fa-fascinante... Obrigada, amor... Muito obrigada!... – Ela atirou-se em Moses, permitindo que ele quase caísse de costas na calçada – Não, eu não mudarei minha essência, eu prometo (beijos sem pontaria na cara do namorado), eu prometo!
Nada como palavras combinadas de uso poético para comover o sexo feminino! Moses, mesmo tendo um Q.I. considerável, notou que veio um lampejo intelectual a ele ao falar “fascina” ou “essência”, que não eram palavras corriqueiras para ele. Mas no espaço de tempo em que pensara nisso (enquanto se recompunha do abraço impulsivo de Ruby), quis acreditar que os sintagmas surgiram graças à interação de longa data com uma menina inteligente – até acima da média, segundo os boletins escolares. Até porque ele achou que o motivo responsável por sua consciência vangloriar-se, com a investida afetuosa de Ruby, era justamente porque conseguira desestabilizar – por um momento inesquecível - aquela mente tão interessante.
- Então que assim seja. Amor... – Moses podia sentir-se vitorioso, mas claro que ficara emocionado quase tanto quanto Ruby – Nossos laços nunca irão se quebrar. Acabamos de dar uns bons nós nele.
- Não mude também a sua essência querido. Mesmo essas suas analogias não tendo sentido, eu as adoro! – E Ruby desatou a rir junto com o amado, de braços dados, dirigindo-se o para o que seria um domingo atarefado dentro de uma loja cheia de peixinhos dourados, pássaros e chinchilas. Um final peculiar para um conto de fadas tradicional, mas ideal para encerrar um princípio de pesadelo horrível que horas atrás a perturbara – um pesadelo batizado de ‘Sheila’.
Duas semanas depois, foi a vez de Moses passar a noite na casa de Ruby, apesar da grande distância entre os lares dos dois: O bairro Justine, onde localizava-se a Youkoloko, era geograficamente muito afastado de Medellia – região suburbana da cidade – conhecida como “bairro cinza” pelos forasteiros, já que havia sido um bairro de concentração industrial importante para a cidade em décadas passadas e que, naqueles tempos, só possuía o céu poluído e as casas quebradas dos ex-funcionários de tais fábricas inativas. “Maldito seja o progresso tecnológico!” e “Malditas são as barganhas capitalistas!” eram as frases favoritas dos pobres vovôs que ali viviam; gastando o seu tempo contando sua história de vida aos netinhos. Sorte a de Ruby – e de Moses também – que sua casa não ficava próxima ao Morro Blank, local que abrigava o crescimento de uma favela: O tipo de comunidade identificada, já naquela época, ameaçadora igual a um cisto de câncer... Para a sociedade. A diferença é que a culpa de tal perigo se desenvolver não era dos “pacientes”, e sim de quem fazia (ou poderia fazer) o papel de médico.
Antes de Ruby cair de verdade no sono, o lado esquerdo da sua cama já estava roncando. Quando ela virou seu corpo para acariciar e adormecer abraçada ao seu namorado, o pesadelo retornou, invadindo seus maduros ouvidos:
“Sheila... Quero brincar disso de novo... É minha vez! vamos, Sheila... Isso é tão legal...” – Moses falara num murmúrio tão inteligível que até os pais de Ruby, se estivessem em casa, estariam sujeitos a escutá-lo uma vez perto da porta do quarto da filha – O casal tinha ido a um evento para funcionários da empresa onde o pai de Ruby trabalhava. Só voltavam no dia seguinte.
A verdade de Moses só aparecia nos sonhos? Não era possível... Ruby não se lembrava de uma vez ter ficado mais decepcionada do que naquele momento. Como assim “é tão legal...”?! Como assim “brincar disso de novo...”?! A vontade que a adolescente sentiu de acordar Moses com um soco no peito para condená-lo, repetindo as entorpecidas palavras dele, nasceu tão forte que ela achou impressionante o fato do namorado continuar dormindo calmamente... Preso em seu mundo de sonhos (brincadeiras?) enquanto uma fúria flamejante emanava de Ruby e talvez esquentasse o colchão em uns 50 graus centígrados. Antes das lágrimas mancharem o seu rosto albino, ela retirou-se do leito e foi à cozinha. Ela queria comer, mastigar alguma coisa... Queria cravar seus dentes em algo palatável a fim de não cogitar morder o pescoço de Moses e acabar diretamente com seu pesadelo particular; tentar acabar com a tal Sheila indiretamente... Quem diabos ela era? Pensou em telefonar a um dos amigos – os mais próximos do rapaz - justamente para perguntar o número de Sheila porque tinha que comentar um assunto com ela (bastava deixar claro ao amigo que Moses já havia apresentado uma à outra e que elas tinham um selecionado interesse em comum, e Ruby iria falar para Sheila algo muito interessante a respeito de tal gosto partilhado). Porém já passava de uma hora da manhã e até Ruby lembrar-se de uma preferência sua para usar – sorvete de flocos, violetas, mariposas... Qualquer uma – tornar-se-ia uma noite cansativa àquela mente incessantemente calculista. Ela fez o máximo para relaxar e parar com o imaginário de uma menina bonita junto a seu amado pulando no quarto, e... Brincando. “Se Moses ainda sente algo especial por mim... Como ele pode ser tão hipócrita?! E logo comigo!” – Ruby gritava mentalmente, ficou em desespero sentada no sofá da sala. Fora traída pela pessoa que mais gostava e dependeu do inconsciente dela para saber de tal verdade. Moses e suas devidas confissões provavelmente não viriam até Ruby por livre e espontânea vontade nunca; assim, “de que adianta mudar? Não agrado mais o meu a... Esse moleque! De que adiantaria manter a minha essência se ele deseja outra? Imbecil!” – síntese do turbilhão de raciocínios da jovem naquele instante. Apesar do incontável número de lágrimas que já tinha derramado em questão de segundos, ela arranjou forças para esfregar o braço nelas e concluir algo daquilo tudo, inspirado numa outra decisão de passado recente: “Não agrado mais a Moses... Mas posso agradar ao resto do mundo.”
Opa! Moses terminou o tratamento da cadela Donna. Ele pode considerar-se um homem semi-quase-bem-sucedido nos negócios, porque se tivesse um funcionário diferente de Aizaiah, a YL já poderia ter fechado as portas: O assistente sabe de cor todos os apetrechos médicos precisos para examinar cachorros de qualquer porte, e ainda teve a maior paciência de segurar uma poodlezinha irrequieta durante dez minutos - sendo que Moses não o paga para os serviços de aspecto veterinário. Codi não cansou de mostrar seu espírito prestativo, até ofereceu-se para dar adestramento gratuito à cachorrinha da senhora Mill quando terminasse o curso de aprendizado.
- É sério, querido Aizaiah? Você ensinaria minha Donninha a ficar mais calminha? Eu não faço idéia da melhor forma de agradecer! – A Senhora Mill guarda um amor tão cego pela cadelinha que atribuiu intensidade a uma característica inexistente em Donna... A quadrúpede não era calma, não mesmo.
- Bem, ainda devemos esperar o fim das minhas aulas de adestrador... Mas tenha certeza, madame Mill, que quando eu tirar o diploma do curso, a senhora será a primeira a saber.
Moses continuou a observar e admirar a facilidade com que Aizaiah lida, sem ficar incomodado, com os caprichos da senhora e seu bichinho todo aquele tempo. O trabalho constantemente os deixava exaustos, contudo com um auxiliar tão bom quanto Codi, era viável manter o ritmo sem reclamações. Quem mais sabia que o herdeiro Debiega sempre ficava mais cabisbaixo em determinada época do ano? Que, aliás, era a época em que eles estavam vivendo: Um ameno e recém-renascido junho.
- Ei, Moses... Está me ouvindo? Eu falei para você sobre o jantar que minha família irá fazer? – perguntou Aizaiah no momento que Moses despediu-se da fiel cliente, já fora do estabelecimento, com acenos e sorrisos amarelos.
- Jantar o quê? Não rapaz... Não disse nada, acredite... Um jantar com sua família? – Moses não iria esquecer nenhuma palavra relevante que saísse da boca de Aizaiah jamais, até porque o menino nunca falava algo referente à sua família ou sua casa; Quando Moses não desabafava, só ouvia a voz do interlocutor por algum tópico sobre o costumeiro serviço.
- Sabe... Minha avó está visitando a cidade, ela veio do Norte e retornará para lá dentro de dois dias. Ela gostaria que fizéssemos um jantar familiar tradicional, mas desejou também que pudéssemos convidar os... Semelhantes mais chegados. Vale lembrar que você e meu pai não se vêem há um tempo, não é? – Por mais que essa questão tivesse um caráter mais íntimo, Aizaiah falou mantendo seus olhos focados nas prateleiras de alpiste e de brinquedos de uso felino.
- Bem, isso já não é comigo... Ele sabe onde me encontrar caso quisesse matar a saudade, hehe... – O jeito que Moses desferiu esse comentário seria o suficiente para terminar a conversa. As piadas já não eram o seu forte e quis rir junto com alguém, mais novo, que levava as coisas mais a sério do que ele – quando na mesma idade. Codi se saiu bem; fingiu que não ouviu:
- Olha, o jantar será na minha casa mesmo, amanhã, às dez da noite. Você é a única pessoa quem eu convidei. Com licença... – Aizaiah dirigiu-se até a porta à esquerda da abertura que dá acesso às escadas da residência de Moses, possivelmente a fim de pegar algo que esqueceu na mesa de exames dos animais (a “Sala de Atendimento Médico”).
O administrador da YL não demorou a compreender o que Codi deixara no ar: Dizendo que Moses era a única pessoa a ser convidada, o garoto disse-lhe a palavra mágica - ”por favor” - da maneira sutil mais persuasiva que se pode imaginar. Debiega balançou a cabeça bem lentamente e subiu os degraus até o seu quarto. Agora ele teria que escolher qual seria a prioridade de sua atípica sexta à noite: Ou ir, por pressão “amigável”, ao evento anual na praça ou jantar com a avó alheia. Ele custou a acreditar que Aizaiah, do zero, veio convidá-lo para uma reunião – a princípio – de família e amigos próximos. Por isso ficou um tanto sensibilizado; no mínimo mais sensível do que o costume... Não é nem porque o mês de junho representa o tempo gregoriano nesse momento; Moses sentia – melhor, temia – que sua vida atual estivesse gravemente incompleta, numa mistura de desorientação com arrependimento coberto com uma camada de fumaça, bem densa, que proibia que identificasse o(s) problema(s) nitidamente, em sua mente atolada em trabalho e estudos. O universitário iria morrer sem entender como as ditas matérias biomédicas tornavam-se mais complicadas a cada prova; ao compasso que toda a arte curativa, ou dos cuidados aos outros seres vivos, o seu falecido pai dominava com denodo invejável e sem documento algum que provasse toda a sua habilidade! Outra vez usando as palavras hieroglíficas de Derek Debiega “o que seu coração aprende não esquece, e o que sua mente esquece, destrói”.
Visto que parou defronte ao retrato da família mais uma vez, Moses afirmou, consigo mesmo, que em certo ponto de sua jornada teria que parar um pouco para decifrar as letras mais aéreas de seu pai. Mesmo ciente que, quando tal quebra-cabeça fosse desfeito, não permaneceria tão atento ao cheiro nem ao sabor dos ensinamentos dele provenientes. A foto à esquerda da lembrança é uma interrogação; Moses odeia olhá-la, mas a última coisa do mundo que ele faria era tirá-la daquela posição. Entretanto chocou, por um maldito impulso involuntário do pescoço, suas córneas na maior (e mais vistosa) imagem do corredor: Era a praia de Porcelina cobrindo o horizonte iluminado pelo Sol e por um rosto feminino jovial e sorridente, realçando uma paisagem perfeita de cartão postal caso a garotinha não tivesse uma pele tão clara (na contramão do padrão de beleza predominante no país). A felicidade contida no semblante da moça armada com um palito de picolé na mão esquerda - e com uma direita feita para merchandising, pois a postura de modelo apresentando a paisagem litorânea ficara brilhante – não inspirava nenhum sorriso recíproco na face de Moses havia muito tempo. Não era culpa da praia, nem das montanhas ao fundo, do picolé e nem da garota. A moldura negra que prendia aquele “pôster” na parede era o que denunciava o motivo da lágrima solitária do rapaz na contemplação-relâmpago do retrato; tudo era culpa dos dizeres impressos numa pequenina forma oval em relevo situada abaixo da tela. Dizeres? Não... Melhor definindo, datas marcantes:
RUBY CYGNUS LOCKE

20/06/2006
Um comentário:
Ah , mano, ela morreu do q?
=\
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