sábado, 1 de agosto de 2015

CALIBRE [Conto de 6000 caracteres]

CALIBRE


Só restava à Meshell, uma das novas calouras de Engenharia da ECU, respirar fundo novamente. Mais uma vez contendo seu ímpeto emocional, ao relembrar seu êxito em ter entrado no melhor curso de Engenharia? Não. Já se achava instalada num apartamento, distante de sua cidade(zinha) natal e perto da Universidade em que construiria seu sonho. A razão para emitir uma carga maior de gás carbônico foi sua amiga - e parceira acadêmica - demonstrar sua antipatia com o que lia na internet:
- É impossível que você não se indigne agora. Olha: UM BILHÃO EM EQUIPAMENTO BÉLICO! O governo é louco!

- Shara, o Estado sempre reservou parte dos orçamentos anuais para essas coisas e... Sei que é absurdo querer investir em armas com tantas demandas; mas lembre-se que a culpa é das pes...

Pessoas odeiam. A não transitividade do verbo fazia sentido tanto para Shara quanto para Meshell. Contudo, a internauta em questão tinha como maior ‘hobby’ caseiro, desde que se mudou com a amiga, manifestar sua aversão às armas de fogo. Para a caloura, nada era mais desprezível que revólveres, canhões etc. Ela culpava às armas os altos indíces de violência nas cidades grandes; mesmo que Meshell a alertasse que 60% dos crimes culminantes em lesões ou homicídios eram protagonizados por armas brancas ou ‘mãos limpas’ (todas as aspas do mundo são insuficientes). Pessoas odeiam. Na mente de Shara, o desdobramento de todo sentimento negativo acabava em violência covarde e tiros. Os pais dela ligavam semanalmente e sempre ouviam da filha “tá tudo bem mesmo aí, certo? Tomem cuidado!” antes do “tchau”.
Só fazia três semanas da mudança, mas Meshell já sabia que a amizade entre elas seria eterna; pois não ‘desistia’ de abrir os olhos da companheira sobre o exagero e tentava, geralmente, induzi-la a cair em contradição (“você diz que as armas de fogo alimentam o ódio e a covardia das pessoas, mas se você as abomina por isso, alimenta ódio dentro de si mesma”).
- Tá, tá, de qualquer forma, vamos nos aprontar para a Aula Magna inaugural do curso; esqueceu que é hoje à noite? Temos de ir à faculdade. – interrompeu Shara, olhando desconfiada para a porta do apartamento. Pelo barulho, um dos vizinhos estava chorando de novo.

- Vou [grito]... Tomar banho. Os dois estão juntos em casa a essa hora? Que raro. A gente só ouve a criança chorar o tempo todo...

Em três semanas de burocracia e arrumação, Shara e Meshell não conheciam bem a família que morava ao lado. Aparentemente, formada por um casal e um filho único pequeno. Porém, com as férias escolares, o filho ficava trancado em casa e os pais saindo constantemente, devido ao trabalho (?); os sons de discussões e lamúrias já tinham sido internalizados pelas jovens vizinhas.
Uma hora depois, a discussão alheia cessou e as calouras se encontravam prontas para ir à ECU. A Aula Magna que viriam a assistir era uma convenção para todos os ingressantes em Engenharia. O 1º período era restrito a disciplinas tidas como ‘básicas’ aos engenheiros e só no 2º semestre os estudantes escolhiam a vertente do curso em que profissionalizariam. Tradicionalmente, o docente ‘palestrante’ era um(a) engenheiro(a) conceituado em sua área e convidado da Universidade. Após chegarem e entrarem no auditório, um banner indicou quem seria o ministrante do encontro: “Malvo Balzari - Doutor em Engenharia Balística e chefe de perícia criminal da INTERPOL”.
- Não acredito que me desloquei para ver um cara falando de armas!

- Vê se sossega. Ele deve ser um engenheiro incrível, já que tem cargo de chefia na polícia internacional – replicou Meshell.

O reitor da ECU entrou no auditório, sentou e anunciou o Dr. Malvo; um senhor de meia-idade com um semblante pacífico. Ele logo pediu a vez e o microfone:
- Gostaria de pedir desculpas a vocês pelo atraso. Tive de confirmar a patente de uma invenção minha, que detecta a presença de armas de fogo num raio de 1km e...

- AFE! Não quero assistir uma aula sobre armas de fogo!

O rompante de Shara veio com uma voz que ecoou pelo espaço. O olhar de Malvo ficou curiosamente espantado à moça; desde que ela percebeu que virara o centro das atenções no auditório até sair do recinto, com Meshell em seus calcanhares. Ela não se sentia envergonhada (ainda era uma desconhecida); tinha convicção do seu ódio por armas. Depois de uma hora ouvindo a bronca de Meshell no pátio, Shara foi ao banheiro e encontrou o Dr. Malvo no bebedouro – intervalo:
- Bom te rever. Sua personalidade é admirável. Qual o seu nome?

- Shara. Nada do que pode me ensinar mudará minha opinião sobre a desgraça que são as ar...

- Moça, não quero discutir. Apenas gostaria de te emprestar isso [o Dr. colocou a mão para trás e sacou uma...]

- OPA!
   
 A reação de Shara quando Malvo apontou a pistola para ela foi mais interrogativa do que assustada:
- Ha! Um sentimento puro, sem medo! Essa é uma pistola de festim. Os cartuchos são ocos para treinos. Quero que passe um dia com isso e tente ajudar alguém usando-a. Se preocupa com as pessoas e assim não gosta de armas, certo? Admiro você.
Malvo pediu o endereço dela e voltou ao auditório. Meshell viu Shara confusa e foram para casa (”ele brincou, Shara?” “Ah, que venha pegar esse troço amanhã”).
No dia seguinte, depois da aula, o doutor apareceu na porta:
- Boa noite. Ajudou alguém?

- A quem eu teria ajudado com uma arma?

Malvo deu espaço e deixou Shara olhar a porta dos vizinhos pelo corredor. O pai saíra e a mãe consolava a criança chorosa, que apontava:
- BO-LÁ! BO-LÁ!

- Shara, dê-me a pistola.

Malvo pediu licença à vizinha, entrou na casa e viu pela janela uma bola de plástico presa num telhado inferior; o perito atirou e o estampido nas telhas fizeram a bola cair na garagem do prédio.
- Também não aprovo a existência de armas, mas até venenos podem ser utilizados como remédio. Lembre-se: a culpa é das pessoas, não das invenções. Tudo depende de como manipulamos o que temos e, claro, de como ouvimos o próximo.
   
 Pela gratidão mútua, as calouras ganharam amigos e Malvo o gosto por dar aula.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

7º TAKE: SERENO - "The Tale of Dusty and Pistol Pete"


O conto abaixo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais - Biblioteca Nacional (RJ):

   

VII - SERENO


Quão empolgante uma vida pode ser aos 56 anos?
Essa era a pergunta com variável – idade - que o ‘capitão’ Pete tentava responder a si mesmo, situado em diversos âmbitos, desde que seu filho casou-se e o 1º neto nasceu. Como tudo passou depressa depois de 1979... Ele estava, naquele momento, em uma praça pública repetindo a mesma questão mentalmente, enquanto dava milho aos pombos. Por um segundo, veio-lhe outro tópico pertinente à mente: Por que nunca tinha parado para refletir ali, tão perto de casa? Os olhares sujos daqueles pombos famintos e imediatistas não ajudariam a responder.
Pombos... Ao contrário do que grande parte da sociedade achava, animais mais significativos não havia na História de Meladori; e Pete seria a melhor testemunha do fato que assegurava tal certeza: 31 anos atrás, quando sua terra, Meladori, ‘cansara’ de ser uma província dependente e oprimida pelo tirano governante de Porcelina, o uso dos pássaros fora primordial ao exército meladoriano para a guerra de libertação e independência. O acontecimento estava impresso nos livros de História como ‘Revolução Meladoriana’. Embora seja óbvio que aqueles pombos “de praça” (escuros) estivessem longe de serem do mesmo tipo dos pombos que mereciam devidas glórias ou admiração. Não que o capitão fosse racista, mas...
É, ele constatou que aquela praça quase nunca recebera sua visita antes por causa daquilo que estava ocorrendo. O local guardava lembranças ruins... Foi mesmo ali que ele, como soldado especializado no setor de “Informação e Espionagem” pelas tropas no ano da ‘Revolução’, fora espairecer (ou seja, chorar) pelo teor da carta mais decisiva de sua vida: a sua correspondente-pretendente Dahlia lhe escreveu a fim de terminar o relacionamento de longa distância que mantinham.

Pretendente?    
É muito pouco. Dahlia foi o grande amor... E, também, sua irmã ‘postiça’; na guerra, seu falecido pai (major do exército e melhor atirador de toda a armada) tinha sido deslocado para proteger a região de Meladori situada a 100 km ao norte – o extremo mais agitado e ‘separatista’ para as Forças Armadas porcelinas. Lá, sabe-se que ele encontrara uma menina de 16 anos e seu irmãozinho chorando a morte da mãe, atingida por um projétil, num casebre quase sem teto. O velho capitão sentiu pena dos jovens, acolheu-os no quartel... O restante dessa história ‘melosa’ não entra em livros de História.
Pete resolveu voltar para casa quando acabou o milho. Era hora de esquecer aquele passado frustrante. Ora, entrara na Reserva já havia cinco anos; aposentou-se como oficial (soldo elevado), vários de seus contemporâneos militares viviam viajando... É, viajar seria um bom começo. Ao chegar em casa:   
- Vô! Vô! Tem um pombo-correio lá em cima com uma carta para o senhor! – o neto veio lhe comunicar tão surpreso quanto ele ficou. Quantas pessoas além dele mesmo sabiam como...?


- Hah-hah! Não brinque com isso, meu pequeno Pete. Acredito, com quase total certeza, que ninguém, além de seu pai e eu, sabe como treinar pombos-correio em Meladori... Já estou careca de lhe contar as histórias da guerra que eu participei antes de seu pai nascer hah-hah! Vá brincar de out...


- Não, vô, é sério! Um pombo branco pousou em cima da pistola de ‘plata’ do bisavô, a que está na parede! Ele tem algo na perna; liguei para o papai e ele disse que depois vê, mas não pode sair do ‘tlabalho’! – disse nervoso Pete III, de seis anos.


Certo; o rosto de preocupado do neto, e o fato de tal peculiar mensageiro ter parado justamente em cima do maior tesouro (em valor afetivo) que a família possuía, mudara a perspectiva de Pete quanto à notícia. Quem mais, ainda vivo, poderia ser capaz de adestrar pombos para se comunicar? Já que ninguém estava de guerra ou reconhecia onde... Ah!... Sim!
O Capitão deu um pique impressionante em direção ao 2º andar; como não concluira antes?! Quando esteve na praça há 31 anos, tinha lido uma mensagem trazida por um pombo também. Por mais que Meladori já estivesse se declarado independente, os Correios meladorianos ainda se estruturavam. Então, tratava-se simplesmente da mesma pessoa... Pete ofereceu algo ao pombo e colheu a carta – era, sim, de Dahlia:

 Olá, caro Pistol; imagino que esteja estupefato nesse instante... Mas, acredite, para eu ter de me dirigir a você de novo, é algo necessário.    
Por favor, leia: Eu estou sofrendo de uma enfermidade ridiculamente grave. Uma doença no sistema nervoso que o nada eficiente sistema de saúde público daqui consegue curar, apenas retardar... Sei como Porcelina representa o ‘Mal’ em nossa História (e também o porquê); mas, felizmente, ainda consigo lembrar que, se ainda fizéssemos parte de lá, muito provavelmente já estaria livre desse mal. Creio necessitar do melhor neurologista possível antes que a Esclerose Múltipla – um dos ‘brindes’ dessa maldição que adquiri – elimine toda a minha lucidez aos 48 anos.
 Você ainda tem contato com o Dr. Flood? Talvez ele seja o único apto a me ajudar agora, após eu já ter sacrificado as minhas finanças à atenção de todos os médicos ‘privados’ de Meladori, só posso agora enxergar nele uma fração de esperança... Ele está vivo, certo?Eu preciso de ti para chegar até ele, Pistol, não demore a me responder... Sei que estou sendo inoportuna e admito que, outrora, não devíamos ter mexido nos sentimentos um do outro, porém minha saúde está em risco. Elaborando como escrever essa epístola, percebi que não importa o quanto queiramos romper um laço, seus pedaços ainda poderão render nós por muito tempo.
         Espero que você esteja bem (ao menos, melhor do que eu),
                                                                                                     Dusty
 
Pete terminou a leitura trêmulo. O que pensar sobre aquilo...? Estava com esclerose? Mas lembrara dele. Lembrara até de usar os codinomes que usavam nas correspondências antigas. Dusty... Pombo... Então ela continuava vivendo na região árida ao norte, cenário da batalha onde o pai morrera combatendo... Ele ligou os pontos: Dahlia aprendeu com o major a arte da seleção e criação de pombos-correio. E a usou para, brilhantemente, encontrá-lo após lhe dar um fora passível de esquecimento a curto prazo... Nesse aspecto ela se enganara: 
- O vovô já vai soltar o pombinho? – perguntou o neto.

- Na... Não... Bem... Sim. Mas não agora, Pete. Antes tenho de procurar um velho amigo daqueles tempos, velho mesmo... Vou agir. Vai brincar, pequeno. Deixe o pombinho quieto, ele não irá sair daí. – respondeu o capitão, preocupado.


Dahlia teve a proeza de, com a carta, deixar o capitão tenso – apenas por ter ‘voltado’ repentinamente – e também lembrá-lo do Dr. Flood. Esse homem talvez fosse o melhor dos médicos de Meladori; fora o oficial designado para orientar os cuidados aos soldados feridos em 79 e, também, fora a última pessoa a ver o pai de Pete, em seu leito de morte, alvejado fatalmente no cérebro... Nada mais compreensível que ‘Dusty’ desejar ser examinada por ele. O Sistema de Saúde meladoriano andava mal das pernas há um tempo, sem investimentos... Os profissionais mais novos nem ganhavam o que os anos de estudo – e esforço - mereciam. Desestímulo gradativo do governo?... De qualquer maneira, Pete ligara para conhecidos do quartel-general (e ao próprio quartel), pedindo informações atuais sobre Flood. Sem sucesso, mas com garantias de “iremos averiguar onde o capitão vive”.
Após os telefonemas, ‘Pistol’ refletiu: Quero tanto assim ajudá-la? E se, na pior das hipóteses, sua consciência não se abalasse tanto por Dusty sofrer? Era insensível, mas ela parecia ser assim também (...) Ele escreveu para despachar o pombo:


O Dr. Flood não morreu. Gostaria de falar com você pessoalmente. Daqui a dois dias, no Museu Histórico de Meladori às 17h. O que acha?Se puder ir, não precisa mandar um pombo. Espero que você esteja lá. Saúde.
  

Quarenta e oito horas se passaram e nenhuma ave descera na casa ‘Pistol’ durante esse período. Dahlia e Pete iriam se encontrar cara-a-cara – pela primeira vez. No carro a caminho do Museu, ele admitira a ansiedade ao filho (o motorista), mas não daria o braço a torcer. Três décadas se foram e o capitão-adestrador sempre se pegava pensando nela: Encantava-lhe o modo que Dusty usava as palavras quando se correspondiam na época; como ela o ajudou com a dor ao perder o pai, como ela fora mais forte do que ele - por perder duas pessoas queridas e manter-se, na medida do possível, bem. Finalmente a veria e saberia a causa real de ela ter rompido a relação. Ao chegarem:  
- ... Estive prestes a mandar o pombo de volta; mas, infelizmente, ele está velho e precisa descansar após a viagem. Foi a última missão que o incumbi... Então, estou aqui, Pistol.




(CONTINUA... No livro '1979: A Terra dos Milhares de Culpas', de Iury M. Soares)



terça-feira, 9 de novembro de 2010

PRESENÇA

11/01/2010 - Querido Papai Noel,
Eu ainda continuo triste por não ter ganhado uma bicicleta no Natal. Meu pai disse que a culpa foi minha porque não escrevi uma carta para você. Mas eu sei que foi porque, na verdade, não fui um menino bondoso o ano inteiro. Muito bem, hoje estou escrevendo ao senhor e declarando que mudarei meu comportamento ‘rebelde’ a partir do instante em que selarei esta carta. Prometo também que tentarei comunicar ao senhor a cada mês o que acontece por aqui (para o senhor ter certeza que é verdade, minhas cartas serão lidas e assinadas pela minha mãe). Está certo? Espero que o senhor esteja bem... Já sonho lá na frente – em dezembro – andando na minha bike. Gostaria de poder escrever meu nome, mas há chances de essa carta ser extraviada e até divulgada à imprensa. E já que eles não divulgam o nome de menores em más condições de vida... Não me interessa saber como é a vergonha que eles sentem. Sei que o senhor sabe quem eu sou. Ora, o senhor é capaz de voar com renas! Ao menos, espero ter não errado nada de ortografia para não deixar má impressão. Abraços, ‘Xis’.



12/02/2010 - Querido Papai Noel,
Eu quase fraquejei na minha promessa: Após terminar a 1ª carta, meu pai chegou bêbado em casa – o time dele havia vencido o 1º jogo do campeonato – e muito sujo. Minha mãe e ele iniciaram uma discussão enorme e que terminou empatada... Enquanto eles brigavam, o ‘velho’ pegou o envelope e limpou a boca com ele! Era o único! Depois disso, só lembro que eu dei um soco tão forte na barriga dele que expulsei toda a tristeza acumulada que tinha... Pelo meu pai nunca ter me levado para passear, sempre preferir o bar em vez de seus empregos (quem sabe ele ajudaria o senhor, sendo o ‘doador’ da minha bicicleta?) e – claro - por ter me ensinado que só se resolve problemas com pessoas assim: dando pancada. Só agora vejo que isso é errado (minha mão ainda dói). Já a mãe aprovou o que fiz (pus o velho para dormir naquele dia e curar a ressaca) e falou que eu não precisava confessar meu erro ao senhor. Mas se meu pai não ensinou nada sobre sinceridade, então ser franco aqui é a melhor atitude que posso tomar. Ah, as férias acabaram e estou estudando! Abraços, ‘Xis’.



13/03/2010 – Prezado Papai Noel,
O senhor acha que as minhas mensagens estão exageradas? Outra vez, a mãe me aconselhou a parar de chamar o senhor de ‘querido’ e evitar falar ‘eu’... Segundo ela, o senhor irá achar que eu sou ‘carente’ demais e não fica legal – mesmo morando na favela mais miserável da cidade. Mas não entendo: Até acho que as minhas cartas são curtas (pois entendo que você deve ler infinitas correspondências de outras crianças... Precisa economizar tempo). Falei com o meu tio sobre isso, mas ele só riu e me apoiou a fazer o que EU posso para ganhar a bike... E claro, confiar nas boas intenções do senhor (“a sua mãe assiste noticiário sensacionalista demais”). É esse irmão da minha mãe que estará assinando este mês. Certo? Continuo sendo um bom garoto em casa e na escola. Aliás, estou apaixonado pela garota mais bonita da sala e pretendo me declarar. Meus amigos riram quando falei... Tem alguma regra do senhor que me deixe pedir duas bicicletas de Natal (para ela e eu andarmos juntos)? Abraços, ‘Xis’.



14/04/2010 - Prezado Papai Noel,
Embora o meu aniversário esteja chegando (daqui a uma semana), já sei que o meu sonho da bicicleta não será antecipado: Todo o mundo sabe onde a minha mãe esconde presentes para as suas “pessoas queridas” – parte alta do guarda-roupa – e meus pais me darão um boneco de um personagem de animação. O Joe Nice... Até assisto o desenho na TV, mas é muito comum ver crianças com coisas dele por aqui. Desde lancheiras até toalhas, o Nice é visto em todo lugar. O senhor o conhece? Disseram que, se o senhor trouxesse algum presente com ‘ele’ pra mim, provavelmente ele não seria “original”. Mesmo quase com 11 anos de vida, não entendi bem. Não importa: a missão de trazer a bike ainda é do senhor! (risos) De qualquer jeito, ver esse boneco foi bom: É a prova que minha família já me considera um menino melhor. A garota a quem me declarei na escola riu de mim, mas admirou minha coragem. Esperança? Abraços, ‘Xis’.



15/05/2010 - Prezado Papai Noel,
Vem acontecendo muitas ações estranhas aqui na favela... Tanto que não devo mais chamá-la de ‘favela’, e sim “Comunidade”. Vem vindo muita gente de terno e gravata pra cá e há uns palcos nos vários pontos planos do Complexo onde eles gritam no microfone palavras como “igualdade”, “dignidade”, “honestidade” e “comunidade”... Segundo meu pai, são essas pessoas que cuidam da gente. Mas não posso acreditar, já que ele estava de ressaca após ter sido convidado a tomar “um copinho só” - por um dos engravatados. Ele falou isso tão feliz que eu fiquei assustado. Falando no meu velho, quando ele me viu brincando com o boneco Joe Nice, aproveitei a chance para dizer um ‘obrigado’ sincero. Ele ignorou (“se você crescesse mais rápido, já trabalharia para pagar logo o preço absurdo que foi isso!”). Como é que o senhor ganha tanto dinheiro para realizar todos os pedidos, hein Papai Noel? As lojas te dão mais desconto ou o senhor é, de verdade, o criador de todos os brinquedos? Abraços, ‘Xis’.



16/06/2010 - Prezado Papai Noel,
Começou a Copa do Mundo de Futebol! O senhor está torcendo para qual país? Todo mundo aqui já comemorou ao máximo a 1ª vitória do Brasil (que foi ontem). Principalmente o meu pai... Ele esvaziou todos os copos que viu pela frente após o jogo. Conclusão: A briga dele com a mamãe foi feia! Todos os nossos vizinhos já sabem que ele tem um sério problema de saúde. Sério, sério. Parece que o álcool o transforma no homem mais poderoso do mundo: ele mexe com o dono do bar, com os amigos, grita, esperneia, gargalha, pula... E quando cai em si (depois que dorme e acorda), fica um cara calminho e sem muitas palavras. Não pense mal dele, Papai Noel, ele não teve sossego quando criança... Meu avô sempre disse para “suar mais e ler menos” ao seu filho. 12 garrafas de cerveja libertam mais conhecimento e ousadia nele do que qualquer “puxão de orelha” da minha mãe. Eu me acho bem inteligente – e modesto (risos). Falando sério, não sei mesmo a quem puxei. Voltando a falar de Copa... Um professor contou que o senhor mora na Finlândia, um país frio e que não está disputando o Mundial. É verdade? O senhor se importa com futebol assim como nós? Abraços, ‘Xis’.



17/07/2010 - Prezado Papai Noel,
Tenho uma péssima notícia para dar... Antes que o senhor imagine “a notícia é que o Brasil não ganhou a Copa, isso eu já sabia”, não é nada disso, mesmo: Meu pai bateu na minha mãe após uma discussão sobre a bebida. Obviamente, eles se separaram... Ele foi para a cadeia e ela para o hospital público mais próximo daqui. Ele havia entrado numa “paranóia corrosiva” (ouvi isso na TV e achei parecido com a situação) desde a derrota da seleção para a Holanda, Papai Noel. Não parava quieto em casa, chorava direto e descia o morro para comprar aguardente todo dia! Segundo o meu pai, “a vida não faz mais sentido, porque todos nós somos perdedores”. Mas se 11 homens do meu país perdem no futebol, a culpa é dividida até aos torcedores? Caso seja, realmente o senhor não poderá me presentear com a bike... Pois eu também agi errado, então tudo custou o troféu para o Brasil. De qualquer modo... A briga fatal deles foi há três dias e foi ruim demais assistir tudo aquilo. O meu tio falou - depois de levar o meu pai à delegacia - o seguinte: “Infelizmente, o que nunca irá deixar a gente é a pobreza...” – Foi bom ‘aprender’ isso. Não estou triste não, acho que a prisão será boa para ele. Espero que, quando a garota da escola querer me namorar, nós não briguemos como meus pais. Assim, não quero ficar ‘abastecido’ quando crescer! Abraços, ‘Xis’.



18/08/2010 - Prezado Papai Noel,
Os caras engravatados voltaram a aparecer aqui no Complexo com mais frequência. Aliás, alguns primos meus mais velhos (que não moram por aqui, mas em outros pontos do subúrbio) disseram que um deles era o senhor! Sim! Parece que o senhor já deu presentes a eles há quatro anos! Puxa, mesmo ficando feliz com isso, crio uma dúvida na cabeça: O senhor não usava apenas aquela roupa vermelha? Nunca vi uma foto do Papai Noel vestido como patrão... Por favor, Papai Noel, responda esta carta de agosto o quanto antes, senão eu acho que não irei dormir daqui pra frente. Voltando aos caras de gravata: todos eles só falam em cima de um palanque e só ouvem quando abraçam ou apertam a mão das pessoas daqui. Pelo jeito que alguns vizinhos gritam seus nomes, devem ser homens próximos de Deus... Ora, venho ouvindo as palavras “salvação” e “solução” sem parar. Estou ficando bem assustado. Abraço, ‘Xis’.



19/09/2010 - Prezado Papai Noel,
Por que ainda não respondeu a minha carta?! O senhor prometeu! Nos encontramos há 19 dias num morro da cidade e você estava bem barbudo e de terno! Disse que iria ler as minhas cartas e escrever de volta... Como o senhor quer que eu acredite no senhor agora? Já falei à minha mãe e aos meus tios para fazerem aquilo que pediu (digitarem aquele número do papelzinho no dia das Eleições). Até pedi ao meu pai - ainda na cadeia – para levar aquilo à urna. Eu posso ser criança, mas já detesto ser enganado por alguém, Papai Noel. Estou tentando ao máximo ser um bom garoto, mas confesso que vinha esperando um retorno de incentivo após oito cartas! Agora eu me pergunto: O que acontece se vários adultos colocarem o seu número nas urnas? Você será ‘eleito’, certo? Significa que o senhor poderá dar mais atenção a quem se importou com o seu número? Pronto. Há três novas perguntas aí para me responder. Junte aí na sua conta. Se quiser falar comigo pessoalmente, irei ao Morro de novo. Até logo, ‘Xis’.



20/10/2010 - Papai Noel,
Não tem explicação para o vexame que o senhor me fez passar no dia das crianças (12/10): Além de ter presenteado com uma bicicleta apenas a garota que eu queria namorar (ela não é órfã de pai e a mãe não é alcoólatra! Ela só sente inveja das vizinhas ciclistas), você me levou ao palanque onde falava abobrinhas e quando me deu o microfone, para eu dizer meu maior desejo, você o toma de mim rapidamente após ouvir a verdade? O senhor é mesmo um mentiroso! Já que sempre eu sou ignorado por minhas cartas, acho que mandarei várias por dia agora e torcerei que sua casa fique entupida de papel. Quem sabe o senhor começa a se importar com as árvores - seres mais inocentes do que eu... As eleições já acabaram e espero que você não ganhe um trabalho de ‘político’, não no meu país. Volte logo para a sua Finlândia, Groenlândia... Deixe os brasileiros em paz! A última coisa que precisamos é de gente falsa. Até, ‘Xis’.



21/11/2010 - Noel,
Você está aparecendo ultimamente em todos os jornais (iria terminar a frase com uma pergunta, mas já que você nunca responde nada)... – é uma pena que meus familiares tentam esconder ao máximo a notícia sobre o senhor de mim. Bem, eles tentam e conseguem. Mas se você está ocupando a maioria das primeiras páginas, no lugar das fotos sobre futebol e dos sorrisos dos artistas, significa que o senhor fez alguma coisa errada... O sujeito apresentador do jornal mostrou uma foto sua num fundo cinza... Minha mãe disse para ir brincar lá fora e não ver a notícia. Enfim... Quer saber? (“claro que não”) – Não estou mais aí para você ou o presente. Graças a minha ‘promessa’ de ser alguém mais comportado, estou com notas melhores na escola e muitos elogios das pessoas. Se eu continuar bom aluno, ficarei rico e comprarei quantas bicicletas quiser. Vai demorar, mas não precisarei mais ter fé em você. Até, ‘Xis’.



22/12/2010 - Prezado Papai Noel,
Desculpe-me se por um instante eu senti ódio do senhor... Fiquei sabendo que havia um cara, muito parecido com o senhor, que queria ser político e... Ele foi preso no início do mês, condenado por uma causa chamada de ‘corrupção’. Minha mãe disse que isso é um dos piores crimes existentes e se ele fosse mesmo Papai Noel nunca iria fazer corrupção. Por isso, acredito que os carteiros dos Correios enviavam todas as cartas que mandei, no ano inteiro, para esse cara... Porque também se confundiram como eu (o senhor e ele são realmente idênticos). Bom, desde janeiro, vinha sonhando por uma bicicleta e estava “enchendo o seu saco” por ela todo mês. Porém, minha família fez uma vaquinha – e com nossos vizinhos dum morro aqui no Rio de Janeiro - e eu recebi uma bike linda de presente há dois dias. Se não fosse meu esforço para consegui-la, não a teria. E meu esforço foi motivado pela sua bondade em dar presentes aos outros. Se o senhor tinha uma bicicleta reservada pra mim, por favor, dê para uma pessoa tão pobre quanto eu era. Creio que agora o senhor receberá essa carta, então... Obrigado por tudo, Papai Noel. Feliz Natal! Abraços. ‘Xis’.